
Ronald Péres

Rua Doutor Moreira
Dolorida lembrança colada na “parede da memória”
Por Ronald Péres
Dia desses, “zapeando” pela página mantida no Instagram pelo competente pesquisador Ed Lincon Barros Silva, meu confrade nas investigações acerca do rico passado de nossa cidade, me deparei com a linda e rara fotografia que encabeça este texto, e que retrata uma casa de família outrora situada na velha Rua Doutor Moreira. Uma morada com a tipologia usual para os padrões da época em que foi construída, dotada de um único pavimento, de fachada simples, sem maiores ornamentos, composta por uma porta e duas janelas, e o telhado arrematado por beiral com telhas coloniais à vista; bem ao estilo das residências construídas em Manaus durante o período da Província (1850-1889) e até um pouco além, já no início da República (início da década de 1890).
Muito evocativo, o referido registro - a par do seu notório valor de per si, do ponto de vista técnico, pela sua nitidez e enquadramento - me chamou novamente a atenção para um fato que há muito me intriga: a quase total ausência de imagens antigas da Rua Doutor Moreira (aqui entendido como aquelas anteriores à instalação da Zona Franca de Manaus, em 1967) disponíveis na vasta e riquíssima iconografia histórica manauara. Uma lacuna para a qual não encontro aparente explicação, de sorte que a histórica via central, formada por dois quarteirões apenas (ou três, se considerarmos a extensão da rua ocupada pelo Palacete Provincial, defronte à Praça da Polícia) possuía, no passado, um perfil inteiramente residencial, tendo sido habitada durante décadas a fio por algumas das famílias mais ancestrais e proeminentes de nossa terra. Todavia, por algum desses mistérios da vida, não foi ela, em momento algum, objeto de interesse de nenhum dos grandes fotógrafos estrangeiros que, com seu imenso talento, deixaram registros indeléveis de nossa paisagem urbana durante o Ciclo da Borracha: o alemão George Huebner, os italianos Arturo Luciani e Marco de Panigai, e, claro, o genial luso-amazonense Silvino Santos. Ou mesmo de outros profissionais das lentes, menos afamados, mas que, dentro do mesmo período histórico, tenham residido ou passado por Manaus, a serviço de instituições ou periódicos nacionais ou internacionais. Talvez tal “desprezo”, digamos assim, possa ser atribuído ao fato de que a Doutor Moreira fosse uma rua comum, sem elegantes palacetes ou grandes casas comerciais ao longo de seu eixo, embora, pela descrição dos mais antigos, apresentasse um aspecto bastante agradável e uniforme, sendo marcada pelo casario baixo, típico do final do século XIX (tal como o exemplar visto na foto acima), entremeado por alguns poucos sobrados, de feição mais rebuscada.
Mesmo diante dessa evidência, não me conformo com tal lacuna, enquanto pesquisador, e fico a me perguntar, vez por outra, onde poderiam estar eventuais imagens raras colhidas na dita rua, interna ou externamente, se é que elas de fato existem. E a resposta, em caso positivo, desde já, me parece óbvia: “perdidas” em velhos álbuns de muitos desses clãs, coladas aqui e acolá, como fragmentos soltos de um passado remoto, e resguardadas (queira Deus!) por descendentes já da quarta ou quinta geração dos antigos moradores, os quais, com toda a certeza, desconhecem a origem de tais fotos, e, portanto, não as valorizam como merecem. Isso, aliás, acontece, com frequência, não apenas com relação à Doutor Moreira, mas também com diversos outros logradouros urbanos que já passaram por muitas transformações ao longo das décadas (ou dos séculos); assim como no que tange a edificações desaparecidas, arruinadas ou deformadas pela incúria, pela ignorância e pela miséria cultural dos homens.
E este é exatamente o caso da Doutor Moreira, uma das ruas mais aviltadas – para não dizer mesmo “estupradas”, com o perdão da hipérbole – pelo “progresso” avassalador que tomou de assalto a capital amazonense a partir dos anos finais da década de 1960. Dela, pode-se dizer, sem exagero, que quase não sobrou “pedra sobre pedra”, no tocante à sua arquitetura antiga, salvo três ou quatro exemplares que - de tão descaracterizados por intervenções bizarras e cafonas de toda sorte - mal são percebidos pelo passante apressado que a percorre atualmente, imerso na decadência geral que se apossou de quase todas as outrora fervilhantes ruas comerciais do centro da cidade. Um quadro tão desolador que traz à mente, de supetão, a melancólica exclamação do poeta Carlos Drummond de Andrade, ao contemplar, em sua casa, uma velha fotografia de sua Itabira natal, hoje completamente descaracterizada e com suas belas montanhas inteiramente devastadas pela indústria mineradora de ferro: “É apenas um retrato na parede. Mas como dói!” Com o diferencial de que, no caso da Rua Doutor Moreira, nem sequer o vislumbre desse desaparecido panorama fomos capazes de reter, tendo que nos contentarmos apenas com as igualmente doloridas lembranças mal coladas na “parede da memória” de alguns poucos, para evocarmos a letra de uma famosa canção de autoria de outro menestrel, o cearense Belchior, eternizada na voz de Elis Regina.
Um desses “poucos” é, não por acaso, um dos grandes cronistas do Amazonas: Ulysses Bittencourt (1916-1993), filho e neto de homens ilustres - o professor e escritor Agnello Bittencourt (1876-1975) e o ex-governador Antônio Bittencourt (1853-1926), respectivamente. Além do pedigree familiar, que por si só já o gabaritava de antemão, Ulysses era dono de uma prosa fluida e escorreita – característica inerente aos bons cronistas – que imediatamente capturava o interesse do leitor. Uma pena ter sido tão bissexto, já que suas crônicas, até onde eu saiba, se encontram compiladas em apenas dois livros, mas que valem por dez, como se diz. Um deles, intitulado simplesmente RAIZ, publicado em 1985 - e atualmente disputado pelos bibliófilos, pelo fato de estar há tempos esgotado no mercado - é uma obra indispensável para aqueles que buscam, literalmente, as raízes de nossa ancestralidade. Eu o guardo em minha biblioteca como um verdadeiro tesouro e o folheio de quando em quando, para me abastecer da memória prodigiosa desse nobre conterrâneo, cuja família, não por acaso, foi das mais notáveis a habitar a tradicional Rua Doutor Moreira. Chão ancestral, magistralmente evocado por Ulysses, com as minúcias e o lirismo que lhe eram peculiares, na crônica epigrafada de “Velha Rua”, contida na citada obra e abaixo transcrita na íntegra. Convido a todos a lê-la (ou relê-la), e, ao fazê-lo, desfrutarem do privilégio de vislumbrar, ainda que de forma abstrata e imaginária, as pessoas, as casas e o ‘modus vivendi’ que um dia compuseram aquele nostálgico cenário urbano. A bem da contextualização e da ampla informação do leitor atual, considerei oportuno destacar em negrito alguns dos nomes de lugares e pessoas citados no artigo, bem como inserir algumas notas de rodapé remissivas, de minha lavra, ao final do texto de Ulysses, a quem desde já peço vênia pela pequena ousadia literária. Mas, como grande homem de letras que ele foi, certamente há de compreender, de onde estiver.
VELHA RUA
Ulysses Bittencourt
“A Rua Doutor Moreira, antes Rua do Espírito Santo (1), é uma das mais antigas de Manaus. A validade de evocá-la não decorre de alguma característica diferente, mas do fato de ser uma via tradicional, igual a tantas outras, e, por ser assim, típica, torna-se importante. Vê-la, através do tempo, acompanhar suas transformações, lembrar dos seus detalhes, e das ocorrências de que foi palco, recordar as atividades que nela transcorriam no dia a dia, é ver e sentir também toda Manaus, um pouco à maneira do arqueólogo que, dispondo para exame de pequenas peças encontradas, parte para a descoberta de todo um magnífico espécime desaparecido.
O nome daquele logradouro homenageia o Doutor Antônio José Moreira, irmão de Guilherme e de Emílio Moreira (2), e que foi médico da Armada Imperial, vindo da Província da Bahia para a do Amazonas, onde ingressou na Política, tendo sido deputado geral várias vezes, desde 1857 até a legislatura de 1878.
Quem hoje percorre a Rua Doutor Moreira não pode ter nenhuma noção de como foi ela até pouco antes do advento da Zona Franca. Tranquila e predominante residencial, era bem arborizada, ladeada de casas com sobrado; possuía pavimentação de pedras do Rio Negro, irregulares, num tom cor-de-rosa (que foi substituída, em 1930, pelo prefeito professor Marciano Armond), cortada ao centro pelos trilhos dos bondes; parecia menos estreita e era dotada de calçadas um pouco menores, mas formadas inicialmente por mosaicos ou blocos inteiriços de mármore de Lioz, com o meio-fio em perfeito arremate do mesmo material.
Ainda lá estão vários dos seus prédios originais, como, por exemplo, os sobrados patriarcais de azulejos portugueses em que viveram as famílias Hildebrando Marinho e do Dr. Abílio Nery (3); o chamado Vaticano (4), em que agora reside o Senador Evandro Carreira, e que, por muitos anos, pertencente à sua família, fora hospedaria para numerosos estudantes e empregados no comércio; a dos meus pais, na qual nasci e nasceram todos os meus irmãos, antes nº 20, atual 88. Das que foram demolidas, podem-se ressaltar duas – um chalé com beirais de madeira rendilhada, em centro de terreno, elevava-se cerca de dois metros do nível da rua, onde morou o ex-deputado José Gonçalves Dias, em frente ao nº 78; a outra, simples porém vasta, foi a casa de estilo colonial de meu tio-avô Francisco Públio Ribeiro Bittencourt, já demolida, outrora famosa não só pelas grandes recepções, mas porque nela nasceu o Ideal Clube, como tão bem registrou Genesino Braga em Assim Nasceu o Ideal (5). Todos os moradores da rua eram não apenas conhecidos antigos, como realmente amigos uns dos outros.
O grosso das compras para abastecimento se fazia pela manhã, bem cedo, no Mercado Público, geralmente voltando-se acompanhado por um carregador. As bolsas eram usadas, como também avantajados tabuleiros de madeira, que os serviçais transportavam na cabeça, equilibrando-os sobre uma grossa rodilha de estopa. Havia duas mercearias (na época chamadas tabernas), vizinhas, ambas em esquinas da Rua Quintino Bocayuva: a Mão Negra, mais tradicional, e a Póvoa do Varzim (6). Frutas eram adquiridas de duas pequenas quitandas (uma ainda existente) ou, sobretudo, de vendedores ambulantes que passavam a toda hora, anunciando de modo altamente sonoro as suas mercadorias, bem como o padeiro, o teque-teque (7) e compradores de jornais velhos. De repente, no começo da rua, surgia com suas barulhentas rodas de madeira e ferro o carro verde do geleiro, veículo fechado, revestido de folha de zinco, com os dizeres: Gelo Crystal, de Miranda Corrêa & Cia., e puxado por um cavalo que parava em cada porta para entrega de “pedras” de gelo de um, dois ou cinco quilos.
Acordava-se muito cedo, lá pelas seis da manhã, ou antes, já com a habitual estridência do jornaleiro. Nessa ocasião, as atividades domésticas tinham início. As casas reacendiam a lenha nos fogões, as portas de abriam e assim permaneciam até após o jantar; o almoço era ao meio-dia, toda a família reunida; havia merenda com mesa posta. A rotina era ir dormir lá pelas 10 horas, no máximo. Depois do jantar, algumas pessoas levavam para a calçada, em frente às suas moradias, e aí ficavam conversando, “vendo o movimento” (8), pois, de quinze em quinze minutos, passava, bem iluminado, o bonde “Plano Inclinado”, que ia até a Fábrica de Cerveja e voltava pela Rua Marcílio Dias. Os roubos eram raros, e os acontecimentos de casa acabavam no domínio geral da vizinhança: as doenças, falecimentos, os partos, aniversários, tudo ganhava relevo e repercussão. Era uma solidariedade verdadeira, nascida de demorada convivência.
Ali funcionaram várias instituições de ensino (9). O mais antigo, o Liceu Amazonense, de propriedade do Dr. Jonathas Pedrosa, depois o Instituto Universitário Amazonense, do professor José Chevalier; a Escola Royal de Datilografia, da professora Hilma de Medeiros Thury; a Santo Antonio Commercial School, do professor Alfredo Garcia; a Escola Brasileira, do professor Pedro Silvestre; e a Zulmira Bittencourt, da família Tupinambá.
Além das pessoas mencionadas (em relação de memória), viveram naquela rua as famílias Simpson, Ermindo Barbosa, Prado Lins, Raymundo Monteiro, Rebello (10), Queiroz, Pereira da Silva, Soriano de Mello, Filizzola, Arnoldo Péres (11), Medeiros Raposo, Frazão Ribeiro, Vasconcelos, Salomão Benchimol, Maneco Soares, Constantino Pessoa, Fadoul, Tude Gomes da Costa. Um dos primeiros moradores, ainda na velha Espírito Santo, foi o meu bisavô, Tenente José Ferreira Ribeiro Bittencourt, ali falecido em 1881. Por trás da casa dele passava um igarapé (que fica sob a Avenida Floriano Peixoto), pelo qual se podia ir de canoa até o Igarapé de Manaus. O mesmo, antes de canalizado e coberto, terminava à altura do antigo Cine Polytheama. Ainda quando chamada Rua do Espírito Santo, Custódio Pires Garcia (12) fez construir um grande palacete, parte central do hoje Quartel da Polícia Militar.
Na Doutor Moreira, morou durante dezoito anos o sábio Barbosa Rodrigues, e, por bastante tempo, a família Alves Ferreira, tendo aí nascido o professor Arthur Reis. No local veio a instalar-se o colégio do professor José Chevalier, onde, em 1909, nasceu o Ramayana (13). A tradicional rua já foi maior do que é hoje, transformada em fervilhante artéria comercial; todavia, era aprazível, e, em sua pacatez, muito mais cheia de personalidade. Evocando-a, diríamos: - “Ai de ti, querida velha rua!”
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NOTAS DE RODAPÉ:
1) A antiga predicação de Espírito Santo – aplicada tanto à rua em questão quanto ao antigo bairro central na qual ela estava inserida – advém do nome do desaparecido Igarapé do Espírito Santo, que, uma vez aterrado e canalizado no início da década de 1890, deu lugar à atual Avenida Eduardo Ribeiro.
2) Os irmãos Antônio, Guilherme e Emílio Moreira eram baianos, mas fizeram carreira no Amazonas desde a época provincial, destacando-se tanto no comércio (com a firma Moreira & Irmão) quanto na vida pública, ocupando cargos de relevo na Associação Comercial, no Executivo e no Legislativo amazonenses.
3) Os sobrados geminados das famílias de Hildebrando Marinho (executivo da empresa portuária Manáos Harbour e pai de Jauary Marinho, primeiro reitor da Universidade do Amazonas) e do agrimensor Abílio Nery (irmão mais novo dos ex-governadores Silvério e Constantino Nery, e pai do ex-prefeito Paulo Nery), inteiramente recobertos de belos e coloridos azulejos portugueses, são dos poucos edifícios centenários que ainda remanescem atualmente na Doutor Moreira, embora bastante deformados pelos sucessivos ocupantes das últimas décadas. Além de vizinhas, ambas as tradicionais famílias acabaram também por se entrelaçar mais tarde pela via do matrimônio, casando membros de seus respectivos clãs entre si, como foi o caso de Paulo Nery e de sua esposa, Jacitara Marinho, irmã de Jauary.
4) A antiga Pensão Vaticano era um bonito sobrado, que, durante muitos anos, foi propriedade da família Carreira. Demolido na década de 1980, cedeu lugar a uma agência bancária, atualmente ocupada pelo Bradesco.
5) O velho casarão da família Bittencourt, cenário do baile de fundação do Ideal Clube, em 6 de junho de 1903, ficava situado bem no meio do quarteirão entre a Floriano Peixoto e a Quintino Bocayuva, lado direito de quem sobe a rua na direção da Praça da Polícia. Era uma das maiores casas da rua, com várias janelas na fachada. O aristocrático clube ali se reuniu por pouco tempo apenas, entre os anos de 1903 e 1905, quando se mudou para uma casa nos baixos da Avenida Joaquim Nabuco, a primeira de suas muitas sedes alugadas. O livro de Genesino Braga, citado por Ulysses, é outro clássico da literatura amazonense, lançado em 1979, e reconta com muita propriedade a trajetória dos primeiros anos do Ideal, até a construção e inauguração de sua majestosa sede própria, no início da década de 1920. Vizinho aos Bittencourt, no antigo número 26, morou também, na virada dos séculos XIX e XX, o engenheiro João Miguel Ribas, autor da primeira planta cadastral da cidade de Manaus, confeccionada a cores na Bélgica, em 1895, pelo desenhista Willy Van Bancels.
6) Rara era a taberna (ou taverna, como queiram), na Manaus antiga, que não fosse explorada por um imigrante lusitano, geralmente oriundo das regiões setentrionais do Douro (adjacente à cidade do Porto) ou do Minho, na fronteira com a Espanha. À falta de “dinheiro vivo”, nem sempre de fácil circulação no passado, muitos deles (mas não todos, a depender do grau de avareza de cada um) lidavam com seus fiéis fregueses por meio de um sistema arcaico de crédito, pelo qual anotavam as compras/vendas em cadernos ou cadernetas – a chamada “venda fiada” (ou seja, empenhada na base da confiança devotada ao cliente) – cuja “baixa” era dada ao fim de certo período (geralmente ao final de cada mês), mediante o pagamento em espécie do ‘quantum debeatur’.
7) “Teque-teque” era o apelido comumente dado aos mascates ambulantes de origem sírio-libanesa por conta da matraca utilizada pelos mesmos para apregoar suas mil e uma mercadorias (tecidos finos, adereços femininos, utensílios, etc). Uma onomatopeia, alusiva ao som (batida) do ‘tec-tec-tec’ produzido pelo referida engenhoca.
8) Ainda cheguei a alcançar, em menino, na casa de minha avó materna, à Rua Lima Bacury, os estertores do salutar hábito da vizinhança local de colocar cadeiras na calçada após o jantar, especialmente nas noites de luar, para “jogar conversa fora” e ficar “assuntando” a vida alheia, com a criançada, à volta de pais, tios e avós, distraída em meio a brincadeiras de bola, bola de gude, corda, manja, barra-bandeira, trinta-e-um-alerta, estátua, esconde-esconde, e outros folguedos que há muito “o vento levou”.
9) Duas dessas escolas chegaram até os nossos dias: a Royal, de datilografia, que, após andar por outros endereços, encerrou suas atividades na Rua Saldanha Marinho; e o Colégio Brasileiro, que, posteriormente, construiu sua sede própria num amplo terreno à Rua Dez de Julho, adjacente ao Hospital da Beneficente Portuguesa.
10) Ulysses refere-se à família do despachante aduaneiro Jovita Rebello, genitor do grande pianista e compositor Arnaldo Rebello (1905-1984), um dos maiores nomes da música erudita no Amazonas e no Brasil, e outro filho ilustre da velha Doutor Moreira.
11) Meu avô, o juiz pernambucano Arnoldo Carpinteiro Péres (1899-1962), também morador da rua, com sua família, durante parte da década de 1940, vizinho à Pensão Rio Negro, ao tempo em que meu pai, Jefferson Péres, ainda usava calças curtas.
12) O comerciante Custódio Pires Garcia, igualmente referenciado por Ulysses Bittencourt em outra crônica do mesmo livro, intitulada “Das Brumas do Passado”, foi um dos homens mais ricos de Manaus em seu tempo, conhecido por ter feito fortuna à base de usura (agiotagem). Por um desses fatores (ou por ambos, conjugados), foi vítima, em 1885. de brutal latrocínio, perpetrado em seu escritório, localizado à então Rua Municipal (atual Avenida Sete de Setembro). O verdadeiro autor do crime, um dos mais misteriosos e rumorosos na crônica policial de sua época, jamais foi descoberto.
13) No último parágrafo, Ulysses se refere implicitamente ao vasto imóvel de linhas coloniais do século XIX, ainda de pé, situado à esquina com a Rua Quintino Bocayuva, lado par. Como dito na crônica, serviu de pouso a diversos moradores, famílias e instituições, ao lago de mais de cem anos. Pela ordem de ocupação: o cientista mineiro João Barbosa Rodrigues (1842-1909), criador e diretor do extinto Museu Botânico do Amazonas, existente na década de 1880, ao tempo da Monarquia; a família de Cosme Alves Ferreira (pai e avô de dois homônimos homens de alto relevo para o Amazonas, nas searas industrial e cultural, respectivamente); a família do jornalista Vicente Reis, proprietário do Jornal do Commercio e pai do historiador e ex-governador Arthur Reis (que nasceu naquele imóvel, em 1906); o Instituto Universitário Amazonense (um prestigiado colégio de ensino secundário, apesar do nome), dirigido pelo alagoano José Chevalier, pai do escritor Ramayana de Chevalier (pai, por sua vez, da jornalista carioca Scarlett Moon de Chevalier). Em tempos mais recentes, entre as décadas de 1950 e 1980, o centenário imóvel ficaria conhecido em toda Manaus como Pensão Garrido, uma hospedaria muito bem gerenciada por uma família de imigrantes espanhóis, da qual descende, já na terceira geração, o meu querido amigo e competente oftalmologista, Dr. Theodomiro Garrido Neto.
O quase sesquicentenário casarão situado na
esquina da Rua Doutor Moreira com a Quintino
Bocayuva, à época (1965) abrigando a Pensão
Garrido. Bastante descaracterizado, ainda se
mantém de pé nos dias atuais. Acervo da fan page
Manaus Sorriso.
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FONTE: Raiz, de Ulysses Bittencourt. Ed. Copy & Arte, Rio de Janeiro (1985); e Hemeroteca Digital Brasileira (Biblioteca Nacional). FOTOS: Acervo do pesquisador Ed Lincon Barros Silva (Instagram), Manaus Sorriso (Facebook) e Rede Mundial de Computadores.
Artigo publicado em 23.03.2025


FRIDAY MUSIC & CINEMA DAY
Cole Porter – O genial gauche da “Era do Jazz”
Por Ronald Péres
Há exatos cem anos atrás, ao longo de toda a década de 1920 e um pouco além, o mundo experimentava um de seus períodos mais férteis de todos os tempos, culturalmente falando. O fim da chamada Belle Époque, marcado pela eclosão, pelos horrores e pelo desfecho da I Guerra Mundial (1914-1918) – resultando em profundas mudanças na geopolítica global e na “ordem das coisas”, de modo geral – deixou definitivamente para trás os últimos lampejos do século XIX, com suas empertigadas modas “vitorianas”, seus rígidos códigos de costumes e seus padrões de vida idealizados à maneira perfeita dos “cromos” pintados de um calendário. E saía de cena para dar lugar a um novo tempo, não menos colorido, nem menos interessante, do ponto de vista sociológico: a curta e movimentada “Era do Jazz”, assim batizada pelos historiadores do futuro em homenagem ao estilo musical que a marcaria indelevelmente.
Um som definitivamente colored, dominado por músicos e artistas de ascendência afro-americana, forjado em sua ancestralidade na batida frenética dos tambores e no canto triste e gutural dos escravos que, por todo o Old South, semeavam hectares e hectares de plantações de tabaco e algodão, fonte da riqueza da altiva e arrogante aristocracia branca norte-americana, humilhada e aniquilada pela sangrenta guerra civil de 1861-1865, tão bem retratada nas páginas da literatura e nas telas do cinema através do clássico ...E o Vento Levou. Um ritmo vibrante, nervoso, febril, evolutivo, quente e sensual, que - nascido e desenvolvido nos guetos negros e pobres e nos bares e cabarés do French Quarter de New Orleans – ganharia nesse período a cena das esfumaçadas casas noturnas, dos elegantes ballrooms e dos grandiosos teatros e movie palaces de Nova York, Chicago, San Francisco e todas as grandes cidades da América.
Tal como ocorria paralelamente com o samba, no Brasil, o jazz, em sua rápida evolução, ao longo dos anos 1920 e 1930, perfazia um movimento centrífugo, saindo da periferia para o centro das grandes cidades, deixando de ser um ritmo das classes mais baixas, eminentemente popular (na verdadeira acepção do termo), exclusivo de lugares suspeitos, para se tornar, tocado, cantado ou dançado, em suas mais diversas modalidades - o swing, o charleston, o ragtime, o blues e o smooth jazz - o “rei” dos salões e dos palcos da nova aristocracia yankee, a elite urbana, endinheirada e descompromissada dos Roaring Twenties, como ficaram conhecidos na História os “loucos” anos 20: magnatas, gangsters, artistas de cinema, playboys, escritores em perene crise existencial e, claro, as míticas “melindrosas”! Mulheres de todas as idades (jamais reveladas), cobertas de jóias, impecavelmente vestidas em delgados e parisienses figurinos, intelectuais ou “cabecinhas de vento”, mas todas invariavelmente belas (ou, no mínimo, charmosas), mimadas, voluntariosas, e cheias de personalidade e glamour. Quem já leu as páginas de O Grande Gatsby (ou assistiu a quaisquer umas das versões cinematográficas baseadas no romance emblemático de F. Scott Fitzgerald) sabe exatamente a qual “mundo” eu estou me referindo. O mundo da assim chamada Lost Generation – a “Geração Perdida”. E põe perdida nisso! Um microcosmo de riqueza e luxo, movido a infinitas e animadas festas, música da melhor qualidade, litros e litros de champagne servidos em delicadas taças de cristal, cocaína a granel servida em finas bandejas de prata, sexo “democrático” e voluptuosamente desenfreado (do tipo “ninguém é de ninguém”), e mais toda sorte de permissividade, loucuras e extravagâncias que se possa imaginar.
Pois foi exatamente esse universo delirante que produziu um dos mais geniais e ímpares artistas do século XX: Cole Porter (1891-1964), um cidadão norte-americano muito bem nascido no seio de uma riquíssima família de Indiana, proprietária de madeireiras e minas de carvão, e que, por isso mesmo, teve a melhor formação que um jovem de seu extrato social poderia ter, estudando nos melhores colégios e sendo obsequiado de todas as comodidades e possibilidades que o dinheiro lhe poderia proporcionar. A par dessas benesses todas, o fato é que Cole revelou-se desde cedo um “menino prodígio”, com um ouvido e um pendor musical fora do comum, versado em violino com apenas seis anos, em piano aos oito, e tendo composto sua primeira opereta aos dez (com o auxílio de sua mãe). Adolescente, ainda cursando nada menos que a prestigiada Universidade de Yale, Cole revelou-se um libretista de mão cheia, chegando a escrever cerca de 300 partituras, a maior parte delas destinadas a compor peças teatrais musicais. Um fenômeno para qualquer artista iniciante. Mas, para Cole Porter, seria apenas o “ensaio geral” de uma longa carreira de imenso sucesso que atravessaria as décadas seguintes...
No início da década de 20, “nadando em dinheiro” e já casado com Linda Lee Thomas, uma mulher divorciada, oito anos mais velha – com quem manteve um casamento “aberto”, já que ele era notoriamente homossexual – Cole se muda para a Europa e lá passa a maior parte dos “anos loucos”, freqüentando as rodas do grand monde, os teatros de Londres, os cafés de Paris, os hotéis e praias da Riviera e as estações de esqui dos Alpes; fumando, bebendo, dançando e “curtindo a vida adoidada”, em todos os sentidos. Estava na verdade, de forma plenamente consciente, se abastecendo dos temas que iriam nutrir a sua arte a partir dos anos 30, quando suas músicas sensacionais - deliciosos e dançantes fox trots, com arranjos sofisticados e letras criativas, divertidas e repletas de mil e uma alusões maliciosas de duplo sentido - “explodem” nos palcos da Broadway e nas telas de Hollywood, em grandes e inesquecíveis musicais. A lista do repertório legado por Cole Porter é enorme e exaustiva, e por si só compõe – ao lado da obra de seus igualmente geniais conterrâneos e contemporâneos, George Gershwin, Irving Berlin e Jerome Kern - um lindo mosaico do que de melhor a música americana (e mundial) produziu em qualquer época, antes e depois. Uma herança cultural ímpar e perene, que, já aos primeiros acordes num salão de baile, executados por uma orquestra de primeira, formada au grand complet, transporta o ouvinte imediatamente para aquele mundo desaparecido da “Geração Perdida”, de Fred Astaire & Ginger Rogers, de finos ambientes Art Déco, decorados com lustres venezianos, cortinas vaporosas e pisos de mármore em xadrez, pleno de glamour, beleza e encanto. Os títulos das canções são amplamente conhecidos de todas as pessoas com um mínimo de boa formação musical, verdadeiros standards, tocados, ouvidos e amados desde sempre. Alguns exemplos da “nata da nata” de Mr. Porter? Vamos lá: Let´s do it (Let´s fall in love),Love for sale, Night & Day, Anything goes, I get a kick out of you, You´re the Top,Easy to love, I´ve got you under my skin, In the still of the night, Get out of town, I concentrate on you, All of you, True love... E segue o baile. E que baile!
É muito difícil tentar definir a extensa e grandiosa obra de um compositor do porte de Porter (com o perdão do trocadilho) numa única canção. Mas, se fosse instado eu a fazê-lo, não hesitaria um só minuto em eleger aquela música que, num uníssono perfeito e simbiótico entre letra e melodia, resume a meu ver tudo o que ele procurava transmitir em sua arte: atemporalidade, leveza, magia, devaneio, sofisticação e sedução: Begin the Beguine, composta em 1935 para o musical Jubilee, e cujos primeiros versos já falam por si, evocando uma noite romântica à beira-mar, quente, constelada, enluarada e propícia ao despertar de uma paixão: ‘When they begin the Beguine (...) It brings back the sound of music so tender (...) It brings back a night of tropical splendor (...) It brings back a memory ever green (...) I´m with you once more under the stars (...) And down by the shore an orchestra is playing (...) And even the palms seem to be swaying (...) When they begin the Beguine (...)’...
Para aqueles que se interessarem mais sobre a vida e a obra de Cole Porter, sugiro assistir ao excelente filme biográfico-musical De-Lovely (título extraído de uma de suas mais conhecidas canções). Estrelada por Kevin Kline e Ashley Judd, impecáveis nos papéis do casal Cole e Linda Porter, a película - além de exibir deslumbrantes cenários e figurinos, e, é claro, um verdadeiro pot pourri da melhor qualidade - retrata também o “lado B” que marcou o final da vida do compositor, que de festivo nada teve, marcado por fracassos, vícios, mutilações físicas e muitas dores existenciais. Paciência. Das “amargas” também é feita a vida... Ou, c´est la vie!’, como certamente diria, com toda a fleuma e a verve que tão bem o caracterizavam, o elegante, talentoso e singular Mr. Porter.
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P. S.: Crônica originalmente publicada na página pessoal do autor, no Facebook, em 10 de março de 2023.
Artigo publicado em 23.03.2025

Les Parapluies de Cherbourg (Os Guarda-Chuvas do Amor)
Um “poema cinematográfico” musical, multicor e imortal
Por Ronald Péres
Na primavera de 1964, o Festival de Cannes laureava com a famosa Palm D´Or um filme absolutamente original e sedutor, que iria marcar definitivamente a história não apenas do cinema francês, mas do cinema mundial como um todo: Les Parapluies de Cherbourg (Os Guarda-Chuvas do Amor, na tradução do título em português). Dirigida pelo jovem cineasta Jacques Demy, a película era protagonizada por uma linda e quase debutante atriz de apenas 20 anos, a loira Catherine Deneuve (1943-), cuja ascensão, a partir do lançamento desse filme, logo a converteria numa das maiores estrelas de sua geração, um símbolo da França e um ícone eterno de beleza e elegância, com uma carreira sólida que já passa de seis décadas.
Fugindo da tradição clássica da cinematografia gaulesa – sempre privilegiando temas sisudos e herméticos, com dramas densos, invariavelmente fotografados em preto-e-branco; característica esta acentuada mais ainda a partir do advento do movimento vanguardista denominado Nouvelle Vague, no fim dos anos 1950 – Os Guarda-Chuvas do Amor trazia para as telas de cinema cores quentes, vibrantes e garridas, em fortes tons primários (vermelho, amarelo, azul) e secundários (fúcsia, rosa shocking, verde citrino); característica cromática acentuada na composição cênica da estória por elementos da moderna publicidade urbana, como affiches (cartazes de propaganda), outdoors e anúncios em neon; além de elementos decorativos dispostos nos cenários principais da trama, a exemplo dos finos parapluies (guarda-chuvas) que dão título ao filme, chapéus, caixas de presente e outros charmosos acessórios vendidos na loja da mãe da protagonista, Geneviève (Catherine Deneuve). A estória, ambientada no final dos anos 50 na cidade portuária de Cherbourg, no litoral atlântico francês, gira em torno da intensa paixão vivida entre a bela moça de classe média e um jovem proletário, o mecânico Guy (o guapo ator italiano Nino Castelnuovo); e da dolorosa separação do casal, ocasionada quando Guy é chamado a servir no front da Guerra da Argélia (1954-1962). E aí reside outra novidade do filme, qual seja, a abordagem de um tema tão sério e tão traumático para a memória recente dos franceses - que perderam milhares de seus compatriotas nessa brutal guerra colonial separatista – evocada sob as saturadas cores (literais, no caso) do romance, da delicadeza e da originalidade, uma característica, aliás, do cinema bissexto de Jacques Demy, casado com outra grande cineasta francesa da época, Agnès Varda, e precocemente desaparecido aos 54 anos.
Filmado como um musical – gênero bastante associado ao cinema norte-americano e pouco explorado na produção francesa até então – o filme de Demy foi ainda mais ousado ao optar pelo formato de opereta, ou seja, uma narrativa inteiramente cantada ou declamada musicalmente pelos atores, do início ao fim, durante os 90 minutos da metragem. Uma missão inglória, no caso de incursões cinematográficas desse tipo, posto que condenada ao fracasso perante o grande público, em mais de 90% dos casos em que fora tentada anteriormente. Não fosse por um pequeno e fundamental detalhe: a acertada escolha do compositor responsável pela trilha sonora, no caso, um jovem e genial músico francês, de origem armênia, chamado Michel Legrand (1932–2019). Pianista, compositor e arranjador, o jovem Legrand, à época com apenas 32 anos, foi - junto com Demy e Deneuve - o terceiro grande nome catapultado a partir do lançamento desse emblemático filme. Graças à presença de Legrand, conjugada a todas as demais virtudes da produção, o filme foi um tremendo sucesso de crítica e público, sendo aclamado em todas as salas em que estreou no mundo inteiro, e em todos os principais festivais de cinema, além de Cannes, realizados dentro e fora da Europa. Transformou-se, ao longo do tempo, num verdadeiro clássico, amado e cultuado por gerações de cinéfilos. Catherine Deneuve, tendo despontado para a fama internacional, voltaria a trabalhar com Demy em mais duas ocasiões: o igualmente delicioso musical Les Demoiselles de Rochefort (Duas Garotas Românticas), de 1967 – ao lado de sua irmã, a igualmente famosa atriz Françoise D´Orléac, precocemente falecida num trágico acidente automobilístico logo após a filmagem – e no drama fantástico Pele de Asno (Peau D´Âne), de 1970. E quanto ao genial Michel Legrand... Bem, este dispensa maiores digressões a respeito, já que seu imenso e inolvidável legado musical (composto para o cinema, principalmente) fala por si. Vide o imenso sucesso de composições atemporais como Windmills of your mind (de Crown, o Magnífico – 1968), What are you doing the rest of your life? (de Tempo para amar, tempo para esquecer – 1969), Summer of 42 (trilha sonora do nostálgico filme homônimo de 1972); dentre tantas outras mais.
Por ser uma opereta, Os Guarda-Chuvas do Amor é dividido em três atos: Le Départ (A Partida), L´Absence (A Ausência) e Le Retour (O Retorno), correspondentes aos diferentes momentos vividos na trama pelo co-protagonista, o conscrito e desventurado Guy. E o momento climático da estória, claro, é a cena da despedida do casal de amantes na gare (estação de trem) de Cherbourg, ao final do primeiro ato do filme. Com direito - como em toda boa cena do gênero – a muitos olhares, beijos, abraços febris e promessas de amor eterno trocados entre a mocinha e o galã. Mas o que poderia ser um melodrama banal, em ‘Parapluies’ se converte - graças à delicadeza da direção de Demy, à perfeita sinergia dos atores em cena, e, sobretudo à deslumbrante e arrebatadora partitura de Michel Legrand – numa verdadeira masterpiece cinematográfica, levando os espectadores da angústia (já desde a sequência anterior, com o desconsolado casal recolhido em sua tristeza, lamentando seu infortúnio, sob a tensão da espera do embarque) às lágrimas (com a linda Deneuve, absolutamente solitária, desamparada e desesperada na plataforma da estação, vendo seu amado partir para uma possível viagem sem volta). Mal sabia ela que volta haveria, mas não necessariamente do jeito que ela sonhara...
Ops! Nada de spoilers! Todo cinéfilo tem o direito (e o dever) de torcer pela felicidade de seus heróis e heroínas da tela...
O que dizer destes versos de Legrand, trocados pelos amantes da tela com toda a intensidade e, ao mesmo tempo, toda a suavidade que somente a língua de Balzac e Racine permite?
De Geneviéve para Guy:
‘Mais jamais, je ne pourrai vivre sans toi/Je ne pourrai pas/Ne pars pas, j'en pleur'rai/Je te cacherai et je te garderai/Mais mon amour, ne me quitte pas!’
(Eu jamais poderei viver sem ti/Não poderia/Não partas! Eu chorarei por ti/Eu te esconderei e te guardarei/Mas, meu amor, não me abandones!)
De Guy para Geneviève:
‘Tu sais bien que ce n'est pas possible/Je ne te quitterai pas!
Mon amour, il faudra pourtant que je parte/Tu sauras que moi,
je ne pense qu'à toi/Mais je sais que toi, tu m'attendras’
(Tu bem sabes que não é possível/Eu não te abandonarei/Meu amor, é preciso que eu parta/Tu saberás que eu não penso senão em ti/Mas eu sei que tu me esperarás)
‘Calme-toi, il nous reste si peu de temps/Si peu de temps, mon amour, qu'il ne faut pas le gâcher/Il faut essayer d'être heureux/Il faut que nous gardions de nos derniers moments/Un souvenir plus beau que tout, un souvenir qui nous aidera à vivre...’
(Acalma-te, nos resta tão pouco tempo/ Tão pouco tempo, meu amor,
que não devemos desperdiçá-lo/É preciso tentar ser feliz/É preciso que guardemos nossos últimos momentos/Uma lembrança mais bela do que tudo, uma lembrança que nos ajudará a viver...)
No cinema, a desventura dos que se amam – bem ao contrário da vida real – é quase sempre bela, intensa, colorida... E musicalmente inesquecível! N´est-ce pas, monsieur Legrand?
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Créditos das imagens: Rede Mundial de Computadores.
Artigo publicado em 15.03.2025

Nino Castelnuovo e Catherine Deneuve em cena romântica do filme Os Guarda-Chuvas do Amor (Les parapluies de Cherbourg), de Jacques Demy (1964)

‘Picnic’ - 70 anos de um clássico do cinema
Sexo, tabus e neuroses nos “semidourados” Anos 50
Por Ronald Péres
Ano novo apenas iniciando, e eu aqui já possuído do meu notório “bicho-carpinteiro” da escrita, louco de vontade de repartir com os meus seguidores minhas impressões acerca de fatos históricos, livros, filmes, canções, celebridades, etc. Assuntos os mais variados, enfim - de ontem, de hoje e de sempre - que me tocam profundamente enquanto ser humano, e que põem “no eixo”, como se costuma dizer, de tão prazeroso que é para mim revisitá-los, de tempos em tempos. Seja na qualidade de historiador, leitor, espectador, ouvinte e fã. Ou de cronista, como agora, reunindo todas essas variadas facetas que coabitam dentro de mim, num harmonioso e salutar “condomínio intelectual”, que me nutre, me enriquece e me impulsiona a compartilhar com meus semelhantes um pouco de tudo de bom que a vida já me deu. E não foram poucas coisas.
Como sou virginiano - organizado “até a medula”, portanto (risos) - me vali de dois recursos para os quais sempre apelo com frequência, antes de tomar do teclado mais uma vez, e que muito me ajudam no processo de decisão. Primeiro, girei a minha “roleta” mental para me autoquestionar, num átimo: “Do que vou falar dessa vez?”. Bem, considerando que estamos em janeiro, mês sempre imbuído daquele “espírito de férias”, e que dispensa, em tese, assuntos mais sérios, a resposta veio rápida: “CINEMA”. Afinal, quer coisa mais gostosa do que falar sobre filmes, estórias, atores e atrizes maravilhosos? E já que estamos em plena temporada de premiações internacionais do gênero (Globo de Ouro, SAG, Bafta, Oscar), e com o cinema nacional com chances de vitória no páreo, penso que não há assunto mais oportuno no momento. Uma vez decidido o tema, me vali de outro macete que sempre me ajuda nessas horas: datas “redondas”, comemorativas de alguma efeméride – no caso, a entrada em cartaz de um filme na tela grande. Assim, com esses dois “ganchos”, lembrei-me imediatamente que, nesse ano de 2025, completam-se 70 primaveras da estreia de um filme inesquecível, e, por incrível que pareça, ainda muito atual em sua temática profundamente humana.
Falo de ‘Picnic’ (ou Férias de Amor, de acordo com o título que foi dado a este último no Brasil), uma película belíssima, de uma intensa dramaticidade romântica e sociológica, uma obra-prima do cinema, que eu classifico como absolutamente indispensável para todos aqueles se pretendem amantes da “sétima arte”. Não à toa, era um dos filmes favoritos de meu pai, e que também me encanta há muito tempo, desde quando, adolescente ainda, o assisti pela primeira vez, projetado na tela da Rede Globo, no tempo da extinta “Sessão Coruja”, ‘a long time ago’, numa época em que ainda havia beleza, leveza e, sobretudo, “vida inteligente” na programação da TV no Brasil. É sobre esta joia rara que quero falar dessa vez.
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Baseado em peça homônima de William Inge, de 1953 – ganhadora do Prêmio Pulitzer, e que angariou um imenso sucesso nos palcos da Broadway desde sua estreia – ‘Picnic’, ao ser transposta para as telas, arrebatou prontamente as plateias do mundo inteiro, desde que estreou, em 7 de dezembro de 1955. As razões para isso ficam claras para qualquer espectador mais sensível, já desde os primeiros takes do filme. A história traça, em cores sutis e cheias de nuances, o sufocante ambiente de repressão social e sexual de uma pacata cidadezinha do Kansas, na moralista década de 1950, com foco na insatisfação afetiva das personagens femininas, aprisionadas em uma vida monótona, previsível e sem qualquer perspectiva de mudança. Tudo muda radicalmente, entretanto, com a chegada ao lugar de um charmoso e sofrido forasteiro, Hal Carter (William Holden), sem “eira nem beira”, e que, apesar de aparentemente não ter nada a oferecer a nenhuma mulher além de doses maciças de virilidade e testosterona, mexerá profundamente com as estruturas estabelecidas da cidade e com a libido das reprimidas e solitárias mulheres da comunidade, das mais jovens às mais maduras. Especialmente da romântica e sonhadora Madge Owens (Kim Novak), a garota mais bonita da cidade, destinada a um casamento sem amor com um rapaz rico, muito por conta da insistência de sua frustrada mãe, que projeta na filha todos os seus sonhos não realizados.
Logo nas primeiras cenas do filme, um diálogo entre mãe e filha é revelador. Madge experimenta o vestido que usará no piquenique que dá título ao filma, enquanto sua mãe faz os devidos arremates. Ansiosa, a mãe sugere que Madge aproveite todas as oportunidades para subir na vida enquanto ainda é jovem, o que, no seu estreito modo de ver, significa fazer um vantajoso casamento com um homem “de posses”. Madge retruca, dizendo que tem apenas 20 anos, ao que a mãe responde: ‘Sim, e no próximo verão terá 21, e depois 22, e depois... 40!”, sugerindo à garota que o temido “caritó” (será que alguém ainda usa esse horroroso e pejorativo termo?) está logo ali, dobrando a esquina. Mas a conversa não para por aí. Emendando, a própria mãe, calculadamente - e hipocritamente - sugere que Madge, durante o piquenique, deixe o calor das emoções fluírem e aproveite para se entregar ao namorado, a fim de forçar um fato consumado e assim apressar o casamento. Ao que Madge, chocada, desaba num convulsivo choro, ao perceber a frieza e a desfaçatez de sua genitora, adotando uma postura sórdida que não era de todo incomum, mesmo naquela repressiva época.
Durante a magnífica sequência do tão aguardado ‘picnic’ – uma bela festa, tipicamente norte-americana, repleta de jogos, guirlandas e fogos de artifício, que envolve toda a comunidade local - acontece a cena-clímax da estória, e, a meu ver, uma das mais belas de toda a história do cinema. No concurso para a eleição da “rainha” do baile noturno, Madge é eleita, e, de posse da faixa, cetro e coroa típicos de quaisquer ‘misses’, ostenta garbosamente todo a sua beleza juvenil desfilando num barco decorado em forma de cisne, que desliza lentamente ao longo do riacho que corta o parque onde é realizada a festa. Postados nas margens, todos a contemplam e a saúdam efusivamente, num momento de delírio coletivo. Tanto poder de sedução, claro, não passa despercebida aos intensos olhares do charmoso Hal, que é evidentemente correspondido imediatamente por Madge. Momentos mais tarde, cessados os ânimos, num recanto tranquilo do bosque, a paixão entre ambos, até então apenas latente, explode de maneira avassaladora e incontrolável, tal e qual uma força da natureza: ao som da clássica ´Moonglow`, logo emendada com a belíssima música-tema do filme, também intulada `Picnic`, Madge, num lindo vestido rosa-bebê, dança sensualmente em direção a Hal, que corresponde da mesma maneira à sua aproximação, como se ensaiassem um ritual de acasalamento, envoltos em uma cativante aura de intimidade e de ternura. Enquanto isso, os demais personagens à volta do casal quedam-se absolutamente estáticos diante daquela cena tão intensa: um homem e uma mulher sedutores e encantadores – igualmente seduzidos e encantados um pelo outro - entrelaçando seus corpos ao som de uma música inebriante, e disparando mútuos “olhares de fogo”, que dispensam quaisquer palavras. Quem vê a cena não a esquece, de tão bela que é. E quem já a viu “milhões de vezes” (como é o meu caso) nunca se cansa de revê-la.
À parte o cativante carisma de Holden e Novak, o filme é repleto de boas personagens, interpretadas por excelentes atores coadjuvantes. A começar por Rosalind Russell, uma atriz veterana, consagrada desde o início dos anos 40 em papéis risíveis nas chamadas screwball comedies (comédias malucas), e também em alguns dramas, que lhe valeram três indicações ao Oscar, sem, contudo, jamais arrebatar a cobiçada estatueta dourada. Em meados dos anos 50, já uma mulher madura, estava destinada, segundo os cânones da Hollywood da época, a papéis secundários, invariavelmente de mãe da protagonista, sem maior interesse na trama. E foi nesse contexto que Roz Russell, como ela era chamada por seus colegas do meio cinematográfico, acabou sendo escalada para o elenco de Picnic, no qual teve a oportunidade de mostrar seu talento mais uma vez. E o fez com maestria.
No filme, ela interpreta a senhorita Rosemary Sidney, uma professora solteirona, residente à casa da senhora Owens, mãe da bela Madge. O papel retrata bem o misto de condição patética e melancólica à qual uma mulher que não tivesse se casado era relegada, especialmente em cidades pequenas e provincianas, residissem elas nos Estados Unidos, no Brasil ou em qualquer lugar do planeta. Voltando ao enredo da estória, a senhorita Sidney vivia um cotidiano medíocre e enfadonho, balizado pelas monótonas aulas na escola onde lecionava e os previsíveis encontros com as amigas. Como forma de defesa à sua frágil condição feminina, ostentava uma falsa moral, sempre com um discurso pseudopuritano na ponta da língua, com críticas ácidas a tudo e a todos, na vã tentativa de ocultar a sua verdadeira natureza: uma mulher frustrada e machucada pela vida, mas, ainda assim, romântica e sonhadora, eternamente à espera de encontrar seu par romântico ideal (ou uma “banda de chinelo velho” que fosse). Um disfarce que mal se sustenta, e que é rapidamente desmontado a partir da chegada à cidade do drifter (vagabundo) vivido por William Holden, momento em que tudo que ela guardava dentro de si aflora de uma forma vulcânica: a feminilidade abafada, o desejo sexual reprimido, o romantismo esquecido, os sonhos de menina-moça não concretizados. Ao longo do filme, sua personagem vai expondo, inicialmente de forma até jocosa, mas depois de modo melancólico, toda a miséria sentimental decorrente de sua vida afetiva fracassada, enternecendo e envolvendo o espectador naquelas angústias femininas tão peculiares ao “belo sexo”, e que assombraram a vida de tantas e tantas mulheres de meia-idade até meados do século XX, antes da liberdade e igualdade sexual trazida pelos “ventos revolucionários” da década de 1960. E, mesmo depois de todas essas revoluções, elas nunca desapareceram de todo. Afinal, quem nunca conheceu, ao longo de sua vida, uma senhorita Sidney para chamar de sua? Elas são arquetípicas, e sempre podem se materializar a qualquer momento na figura de uma tia, uma prima ou uma amiga.
O infortúnio da amarga senhorita Sidney é compartilhado por outra interessante personagem, que lhe faz o exato contraponto etário: a jovem Millie, a irmã caçula de Madge, vivida pela talentosa Susan Strasberg, filha de Lee Strasberg, o famoso diretor do lendário Actor’s Studio, celeiro de grandes nomes surgidos na cena teatral e cinematográfica americana nos anos 50 e 60. Adolescente ainda, Millie também é vítima de uma infelicidade crônica, sofrendo do chamado “complexo de patinho feio” ao comparar-se constantemente à bela irmã mais velha, e sofrendo de uma profunda falta de autoconfiança em si mesma, além de um certo desprezo por parte da própria mãe, que a relega sempre a um segundo plano. Para sua tremenda falta de sorte, Millie, tal como Madge e a senhorita Sidney, também se sente atraída pela viril sensualidade de Hal Carter, acirrando a competição e o sentimento de inferioridade da jovem em relação à estonteante Madge. Mas, ao contrário da patética miss Sidney, Millie possui inteligência emocional, e, tal como muitas moças da sua geração, romperá paradigmas, ao perceber rapidamente que, no seu caso, é através dos estudos e da expressão de sua intelectualidade, e não apenas de um casamento arranjado de qualquer maneira, que ela enfim poderá encontrar seu nicho no mundo e uma chance de contentamento e felicidade.
Rodeando essas três mulheres, suas expectativas, angústias e desejos, que estão no cerne do conflito da trama, há ainda a presença de duas outras importantes personagens coadjuvantes: a senhora Owens (Betty Field), mãe de Madge e Millie, sempre atenta e zelosa com as filhas, porém igualmente frustrada e ressentida por seu próprio insucesso conjugal, e que, em razão disso, tudo projeta no sonhado casamento de Madge, sufocando-a com tantas expectativas, e não se apercebendo que negligencia a caçula Millie, o que termina por infelicitar, ao fim e ao cabo, a ambas as moças. Para sua sorte, mrs. Owens tem ao seu lado a simpática senhora Helen Potts, a vizinha idosa e de alma boa que acompanhou a trajetória da família Owens ao longo dos anos. Tal como a senhorita Sidney, ela também envelhecera sem subir ao altar, e dedicou-se inteiramente a cuidar da mãe provecta. Entretanto, diferentemente das demais personagens, miss Potts é a única pessoa serena daquele núcleo de “mulheres à beira de um ataque de nervos”, conformada com a condição que o destino lhe reservou. Embora seja um papel secundário (quiçá, terciário), o roteirista Daniel Taradash reservou à sua personagem, já no final do filme, uma das frases lapidares do filme, e que, a meu ver, resume à perfeição o “X” do problema e o animus em comum de todas as personagens femininas. Uma frase embutida na cena que a idosa vizinha, em conversa ao pé do ouvido com a senhora Owens, se refere à personagem de William Holden, refletindo sobre a chegada daquele estranho. Uma frase mais ou menos assim: “Acostumei-me com tudo tão em ordem: os gerânios nas janelas, o cheiro dos remédios de mamãe... E de repente ELE chegou. Havia um HOMEM em casa. E isso era bom!” Bingo! Tudo estava dito ali naquela frase. Aconchego versus solidão, lucidez versus histeria, esperança versus desalento. Falta de amor, falta de sexo, falta de vida...
Não posso deixar de mencionar uma passagem curiosa, relacionada aos bastidores do filme, e que retrata bem os paradoxos comportamentais com os quais se debatia a sociedade americana de então. Antes do início das filmagens, o galã William Holden – à época com 37 anos, e dono de um corpo atlético e de uma virilidade latente – viu-se compelido pela Columbia Pictures, o estúdio que produzia o filme, a raspar completamente a farta camada de pelos que revestia seu tórax. A alegação dos produtores era de que sua personagem, Hal, passa boa parte da estória de camisa entreaberta ou com o torso completamente desnudo, e que, sendo assim, tal exposição seria “antiestética” (???). A interdição, na verdade, embutia em si a própria hipocrisia criticada pelo filme, no sentido de não realçar ainda mais o tom carnal da estória (medo de censura, talvez?) e, com isso, atiçar ainda mais a libido das virginais moçoilas espectadoras nas plateias – bem como de muitos gays enrustidos, certamente. Vista em retrospecto, a decisão foi um erro, uma vez que acentuar a masculinidade de Holden iria mais ainda ao encontro do grande objetivo da estória, ao fazer dela o contraponto perfeito à feminilidade “animal” de Kim Novak, e por em total evidência o tema central da discussão: o SEXO, o grande tabu da Humanidade, desde a “noite dos tempos”!
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Antes e depois de Picnic, na própria década de 50, e também ao longo dos anos 60, surgiram diversos filmes – esplêndidos filmes! - abordando a repressão sexual e o amor frustrado, especialmente sob o prisma feminino: Um Bonde Chamado Desejo (1951), Tudo que o Céu Permite (1955), Quando o Coração Floresce (1955), Lágrimas do Céu (1956), Chá e Simpatia (1956), A Caldeira do Diabo (1957), Gata em Teto de Zinco Quente (1958), De Repente, no Último Verão (1959), Amores Clandestinos (1959), Clamor do Sexo (1961), Em Roma na Primavera (1961), A Marca do Cárcere (1961), Infâmia (1962), O Doce Pássaro da Juventude (1962) e Obsessão de Amar (1965), apenas para citar os mais emblemáticos. Em todos eles, tal como em Picnic, o desejo sufocado, o amor enrustido, os sonhos recalcados, são, de uma forma ou de outra, a razão dos conflitos de seus respectivos protagonistas. A sociedade americana que eclodiu do pós-guerra parecia sentir a necessidade compulsiva de romper abruptamente com os vitorianos valores das gerações que a antecederam, e de avançar à velocidade da luz em questões há muito “jogadas para debaixo do tapete”: direito à liberdade de expressão, às escolhas de vida, ao uso do próprio corpo de forma natural e sem tabus. Tudo isso parecia afluir na mente de pessoas jovens e maduras, quase sempre com consequências graves, como é mostrado em cada uma destas “joias” cinematográficas, muitas delas adaptadas a partir de brilhantes peças teatrais saídas da mente genial de Tennessee Williams (1911-1983), talvez o dramaturgo norte-americano mais encenado em todos os tempos, e que eternizou-se pela abordagem brilhante desses temas existenciais.
Não posso encerrar esta crônica sem traçar breves comentários sobre o belíssimo casal de protagonistas do filme, William Holden (1918-1981) e Kim Novak (1933-), dois grandes ícones de seu tempo. Ambos extrairiam grandes dividendos do filme, e seriam mitificados para sempre em razão dele. Para Holden, Picnic representou o auge de sua carreira como galã romântico, ao lado de Suplício de uma Saudade, outro megahit daquele ano de 1955, no qual ele teve por partner a diáfana estrela Jennifer Jones. Foi o ápice de uma trajetória iniciada ainda em 1939, aos 21 anos, quando Bill teve a chance de debutar no cinema contracenando com a grande Barbara Stanwyck, em Conflito de Duas Almas (Golden Boy). Entretanto, o sucesso só viria muito mais tarde, já em 1950, quando ele atuou naquele que viraria um clássico instantâneo, numa crítica genial de Hollywood a si própria: Sunset Boulevard (Crepúsculo dos Deuses, no Brasil), dirigido por Billy Wilder e coestrelado por Gloria Swanson, outro mito dos tempos do cinema mudo. A partir dali, Bill acumularia um sucesso após outro em seu currículo, atuando em faroestes, filmes de ação, comédias românticas e dramas dos mais diversos matizes, recebendo nesse meio tempo o Oscar, por sua atuação em Inferno nº 17, igualmente dirigido por Billy Wilder, em 1953. Após Picnic, ele atuaria no clássico A Ponte do Rio Kwai, de David Lean, que arrebatou o prêmio máximo da Academia em 1957. Era um verdadeiro astro, um ator sólido e carismático, amado e admirado por legiões de fãs mundo afora. Infelizmente, como ocorreu com tantos outros artistas em Hollywood, não teve forças para lutar contra o alcoolismo, um vício que, num espaço de apenas dez anos, devastou sua bela aparência, antecipou sua velhice e acabou por causar-lhe a morte precoce, aos 63 anos, bêbado e desamparado, em decorrência de uma queda estúpida em seu quarto, seguida de um violento baque na cabeça e de uma incontida hemorragia.
Já a “deusa” Kim Novak conheceria o sucesso justamente a partir de Picnic, tornando-se, aos 22 anos, uma das mais populares estrelas da segunda metade dos anos 50, época em que protagonizou, sucessivamente, os sucessos Melodia Imortal (1956), Meus Dois Carinhos (1957), ao lado de Rita Hayworth e Frank Sinatra; Um Corpo que Cai (1958), no qual foi dirigida pelo mestre do suspense Alfred Hitchcock; e O Nono Mandamento (1959), outro espetacular drama romântico, contracenando com Kirk Douglas. Alta, loira, dona de uma beleza nórdica, de um olhar felino, de um corpo escultural, e de uma sensualidade mais sutil que a da “platinada” Marilyn Monroe, Kim Novak - ao lado de Ava Gardner, Elizabeth Taylor, Grace Kelly e da própria Marilyn - é justamente reverenciada como um dos ícones de beleza e glamour não só daquela década, como de todos os tempos no cinema, sendo eternamente lembrada, a cada retrospectiva de sua carreira, pela romântica Madge de ‘Picnic’ ou pela sensual Madeleine, sua misteriosa personagem no filme de suspense de Hitchcock. Sempre subestimada como atriz pelos críticos – o que é uma grande injustiça - Kim teria uma oportunidade ímpar de mostrar todo seu talento alguns anos depois, ao encarar (e se sair muito bem) no difícil papel da amoral Mildred Harris, a anti-heroína criada pelo escritor Somerset Maughan, na terceira adaptação cinematográfica do clássico romance Servidão Humana, levada às telas em 1964. Prova da injustiça a que me refiro é o fato de que até hoje a Academia não lhe concedeu o merecido Oscar honorário. Ao lado de Natalie Wood, Kim pode ser considerada a última estrela de Hollywood forjada sob os moldes do chamado Star System, a intensa máquina publicitária inventada pelos poderosos estúdios da Califórnia para promover um ator ou uma atriz em ascensão, convertendo-os subitamente em ‘movie stars’, da noite para o dia. Coincidentemente, graças à sua longevidade, e do alto dos seus quase 92 anos, completados em 13 de fevereiro, Kim Novak é hoje também praticamente a última “lenda viva” do cinema dos anos 50, derradeira sobrevivente, junto com sua contemporânea Shirley MacLaine (1934-), da Golden Age de Hollywood.
A essa altura, o leitor deve estar se perguntando o que um filme que aborda sobre repressão sexual e pessoas frustradas teria de tão especial, de tão encantador, ao ponto de provocar emoções e memórias tão profundas em seus espectadores. Bem, a resposta é: TUDO! Embora a película nos induza à reflexão sobre muitas das angustiantes questões comportamentais que perturbavam a sociedade americana da época, posso afirmar, sem medo de faltar com a verdade, que ele nada tem de triste ou de “pesado”. Muito pelo contrário. Assim como ocorre com E o Vento Levou, Casablanca, Um Lugar ao Sol e tantos outros clássicos eternos, tudo em ‘Picnic’ é belo, perfeito e instigante. Tudo nos deslumbra e nos faz sonhar: a suave fotografia em Technicolor, o ‘sex appeal’ dos protagonistas, o talento do restante do elenco, a estória envolvente, muito bem conduzida pelo diretor Joshua Logan, as arrebatadoras canções ‘Moonglow’ e ‘Picnic’, as evocativas cenas do piquenique e da dança erótica que deflagra as paixões recolhidas das personagens; e, sobretudo, o FINAL do filme, aquele final, que enche nossos corações de uma alegria abstrata e de um sentimento quase mágico de felicidade, de alumbramento e de fé na vida. A vida de todos nós, que um dia conhecemos não apenas uma senhorita Sidney em nossas famílias, mas também uma valorosa Millie na escola, ou uma encantadora Madge numa festa qualquer, desfrutando, absoluta e poderosa, de sua efêmera e preciosa juventude. Pois nisso reside a magia do drama real entrevisto através da arte. “Dourar a pílula” das agruras e mazelas do cotidiano, e deixar em nossas vidas algo de bom e de puro - ‘a taste of honey’, um perfume de rosas, um ´je ne sais quois´ - que nos faz acreditar que o mundo pode ser mais bonito do que ele muitas vezes se apresenta, e os seres humanos um pouco mais dignos dessa condição.
“A thing of beauty is a joy forever”
Keats (poeta inglês)
FOTOS: Cartaz e foto do filme ‘Picnic’, retratando o casal de protagonistas Hal (William Holden) e Madge (Kim Novak). Acervo da Columbia Pictures, disponível na Rede Mundial de Computadores.
Artigo publicado em 02.02.2025


Just The Way You Are – As love songs e o auge do romantismo da década
de 1970
Por Ronald Péres
Canções classificadas genericamente como “românticas” sempre foram uma constante no universo da música popular e uma aposta certa no sucesso no hit parade – sejam elas bem ou mal compostas, chiques ou bregas, lentas ou compassadas, sublimes ou piegas; e não importando o gênero: baladas, boleros, tangos ou sambas-canções. A razão do êxito comercial de tais composições é óbvia, devido ao fato de estarem, todas elas, invariavelmente, associadas ao amor, ao “estar apaixonado”, ao indefectível “estado de graça” que leva um ser humano a pensar no outro, no objeto de sua paixão, full time, 24 horas, como se os dias, as tardes, as noites e as madrugadas fossem apenas meras abstrações cronológicas, marcadas pelo tic-tac dos ponteiros de um relógio, que, tal e qual uma verdadeira “câmara de tortura”, ali se encontram tão somente para separar lentamente a hora precisa daquele telefonema (ou daquele chat) tão esperado, com o ser amado, de preferência no aconchego de um sofá ou no regaço de uma alcova à meia-luz. A hora da voz sussurrada no ouvido, da palavra mais doce no teclado do celular, da emissão do emoticon carinhoso de mil e um corações, de frases do tipo: “(...) Não consigo tirar você da minha cabeça“, (...) Estou sentindo tanto a tua falta”, “(...) Preciso te ver de qualquer maneira”. Quem nunca? Que seja transformado numa infame estátua de sal, tal e qual a bíblica mulher de Ló, esse espectro desalmado, esse infeliz arremedo de gente, que passou por este planeta e, literalmente, não sorveu do “jardim das delícias” de uma paixão arrebatadora!
Em outra vertente, essas “horas de desespero” podem ser enquadradas dentro daquele tempo interminável que medeia o próximo reencontro com aqueles a quem amamos: no shopping, no cinema, no restaurante, na boate, na praia... Para uma hora dessas, de mentes obnubiladas, corações palpitantes, suores e tremores gélidos, calores íntimos e permanente lassidão, nada melhor do que curtir uma boa música de “dor de cotovelo” - ou de “frisson hormonal” (digamos assim), a depender do estado down ou up da ansiosa criatura imersa em febril e incurável paixão. Músicas como a “quente” Just The Way You Are, mega hit do norte-americano Barry White, um clássico das pistas de dança, do som dos carros de vidros fumé e da música-ambiente dos motéis; e presente na trilha sonora de dez entre dez apaixonados entre os 15 e os 60 anos viventes entre meados dos anos 70 e o final da década seguinte.
Quando Just The Way You Are foi lançada, em 1978, o mundo vivia em plena era dos “embalos de sábado à noite”, da efervescência das boites e da chamada disco music, um subgênero musical, misto de rock e balada, feito exclusivamente para as pessoas “ferverem” freneticamente por seis ou sete horas nas noites e madrugadas do planeta. Tempos das históricas boates Studio 54 e Régine´s, de Nova York; Dancin´ Days e Hippopotamus, do Rio de Janeiro; e das manauaras Boate dos Ingleses, Crocodilo´s e Moranguinho. Os “reis” das pistas, nesse ano preciso, eram, evidentemente, os Bee Gees (os talentosos irmãos australianos Barry, Robin e Maurice Gibb), emplacando um sucesso atrás do outro, todos extraídos do super álbum Saturday Night Fever, trilha sonora do filme de mesmo nome, estrelado por John Travolta. Michael Jackson somente iria “estourar” em sua carreira solo, dentro do estilo dancing, no ano seguinte, com as requebrantes Don´t Stop Til You Get Enough e Rock With You, ambas com arranjos criados pelo genial produtor musical Quincy Jones. Já o cetro de “rainha” era dividido, democraticamente, entre as duas grandes disco divas da época, Gloria Gaynor e Donna Summer, ambas donas de poderosas vozes de semi-contralto e de ardorosos fã-clubes de fiéis e fanáticos seguidores e imitadores, dentro da comunidade hoje chamada genericamente de “LGBTQI+”. Era a época das luzes estroboscópicas, das caixas de som dos primeiros DJ´s, dos macacões estilizados, das meias de lurex, do brilho dos lamês e paetês; dos laquês e das maquiagens carregadas; e das “leoninas” cabeleiras cultivadas por homens e mulheres, à la Barry Gibb e Farrah Fawcett (a loura fatal do famoso seriado televisivo As Panteras).
Mas esse era apenas um lado da história. Porque do outro, claro, havia - como sempre houve, diga-se de passagem – a esperada pausa ‘for making love’, parafraseando o título do saudoso programa local veiculado pela Rádio Difusora nos anos 80, e capitaneado às altas horas da noite pelo inesquecível locutor F. Cavalcanti, com sua embriagante “voz de conhaque”. Como ninguém é de ferro (nem mesmo aos vinte e poucos anos), depois de tantas “sacudidas de esqueleto” na pista de dança, era imperiosa essa parada estratégica, aqui e acolá, para um drink, um respiro, um recosto na poltrona, uma conversa ao pé do ouvido, uma paquera, muitos “amassos” e sabe-se lá quantos beijos intermináveis, até o fôlego dizer chega! Era a hora em que saíam de campo os musos e musas “do agito” e entravam em cena outras “divindades” daquele período, não menos icônicas, talentosas e donas de românticos vozeirões: Stevie Wonder, Diana Ross, Marvin Gaye, Lionel Ritchie, Roberta Flack, e, evidentemente, Michael Jackson e Barry White – a turma da Motown, a emblemática gravadora de Detroit fundada pelo produtor Barry Gordy, totalmente calcada na ‘soul music’ e no ‘rhythm & blues’, e responsável pelo lançamento de todos esses fantásticos artistas ‘black’, entre os anos 60/70. Dentre outros tantos mais, todos na mesma “pegada”, como B. J. Thomas, Barry Manilow, Billy Paul e Kenny Rogers... O ‘set list’ dessa turma da pesada? Quem viveu sua juventude na época (e mesmo um pouco depois, até fins dos anos 80) se lembra muito bem: Rock´n Roll Lullaby, Got To Be There, You Are Everything,Stop, Look, Listen To Your Heart, Killing Me Softly With This Song, The Closer I Get To You, Solitaire, Evergreen, I Loved You, Three Times A Lady, Easy, How Can You Mend A Broken Heart, How Deep Is Your Love, Too Much, Too Little, Too Late, One Day In Your Life, My Love, Mandy, You Make Me Feel Brand New, Without You, Love´s Theme, You And I, Overjoyed, Lately, Making Love, It Might Be You, Best That You Can Do, Lady, Feelings, Conversation e She´s My Girl (sendo estas três últimas super sucessos lançados pelo brasileiro Maurício Alberto Kaisermann, mais conhecido como Morris Albert). E segue o baile... Resistir a tais apelos sonoros ao coração, quem havia de, não é mesmo?
Todas essas canções maravilhosas são clássicos, são standards, que não apenas resistiram à passagem do tempo – e lá se vai cerca de meio século desde que foram gravadas originalmente – como ultrapassaram o seu próprio caráter comercial. São peças cult, produtos culturais tão valiosos, dentro de seu estilo, quanto quaisquer composições eruditas de Mozart, Beethoven ou Bach. Fazem parte de nosso patrimônio auditivo-afetivo, e, sempre que executadas, mexem profundamente com nossas emoções. Com as minhas sempre mexeram, E continuam mexendo, já que eu as escuto regularmente, quase como uma prece diária, para me tele-transportar novamente àquele período tão intenso e tão saudoso, onde o amor estava literalmente, no ar.
Poderia, pois, ter escolhido qualquer uma delas para intitular essa crônica em homenagem à inesquecível ‘love music’ dos anos 70. Mas, como me vi obrigado a eleger apenas uma, como síntese de tudo o que aqui tento descrever, não hesitei um segundo. E resolvi cravar em Just The Way You Are, por ser ela certamente uma das mais representativas daquele período, do “clima” daquela época, de um tempo em que, sem exagero, estando no ambiente esfumaçado de uma discoteca, todo mundo esperava “alguma coisa de um sábado à noite”, como cantaria depois o Tony Garrido. E esse “alguma coisa”, claro, passava quase sempre pela via do namoro – nas modalidades “banho-maria”, “fogo brando”, “fogo alto” e réchaud. Ou seja, paquera, “engate”, paixão/tesão total e reconciliação.
Nessas horas, quando o DJ acionava, por exemplo, a emblemática canção de Barry White, ou alguma outra de Roberta Flack & Cia., a deixa estava dada: quem estava numa boa, entrava numa melhor ainda. E quem estava na “fossa”, ia direto para o fundo do poço, sem escadas. No caso destes últimos, as cenas eram risíveis e patéticas. Mme refiro aos homens, em especial: o sujeito, jovem ou “balzaquiano’, que não tinha coragem de dar aquele “chega mais” no objeto de seu desejo (ou já tinha simplesmente levado um “fora” homérico), ficava recostado sozinho no balcão do bar ou afundado na poltrona, balançando um copo de uísque ou de vermute ‘on the rocks’, com o olhar de “cabra morta” perdido no vazio. Imerso nessa bad trip, frustrado em seus intentos, entornava todas e começava a enrolar a língua e a repetir “trocentas” vezes a mesma lenga-lenga, enchendo o juízo do garçom que o servisse ou do primeiro infeliz que se postasse ao seu lado disposto a ouvir suas infinitas lamúrias e desditas amorosas. O próprio estereótipo do “chato”, outro clássico da night. Bizarre, como dizem os franceses...
Mas o bacana mesmo era admirar, num exercício de quase voyeurismo, a atitude-padrão, sinérgica e paralela, adotada pelos que estavam do outro lado da ponte, ou seja, o pessoal que estava ‘in the mood for love’. E que desfrutava, com calores e sem pudores, de tal estado de espírito. Quando, no caso do exemplo que tomei, Barry White declamava o recitativo de Just The Way You Are, sussurrando a introdução da melodia com aquela poderosa voz de barítono que Deus lhe deu, as portas do Paraíso de abriam para os pretendentes a amantes: olhos nos olhos, pernas roçando embaixo da mesa, “mãos bobas” perpassando cabelos, pescoços, colos, costas e rostos; bocas se aproximando, palavras cessando, corpos falando por si, êxtase e volúpia, instinto animal em estado puro. Ao fundo, no swing e na voz do “cupido” Barry, as primeiras frases da canção davam o recado da própria essência de quem ama de verdade: ‘Don´t go changing... Trying to please me... You never let me down before... I don´t imagine you´re too familiar... And I don´t see you anymore... I would not leave you in times of trouble... We never could have come this far... I took the good times, I´ll take the bad times... I´ll take you just the way you are!’
Declaração “na veia”, sem filtros, sem firulas, sem frescuras. O resto? A cumplicidade da “noite-criança” se encarregava de ajustar. Fosse onde fosse, do jeito que fosse, pelo tempo “infinito” que fosse...
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Obs: Crônica publicada originalmente na página pessoal do autor, no Facebook, em 07.04.2023. Imagem: Rede Mundial de Computadores.
Artigo publicado em 12.01.2025

“CORONEL” HENRIQUE DE SOUZA, MEU AVÔ – UM GENTIL HOMEM
Por Ronald Péres
24 de outubro, data oficializada, já há alguns anos, como o aniversário oficial de Manaus, traz embutido consigo, nos recônditos de minha memória afetiva, um selo de saudade. Nesse dia, há quarenta anos, eu me despedia de uma figura muito especial, um homem que - ao lado de meu pai, Jefferson – representou com toda a certeza um dos primeiros e maiores referenciais masculinos em minha vida. Por isso mesmo, peço licença aos meus leitores, para, mesmo correndo o risco de ser um tanto cabotino, falar um pouco sobre ele e sobre sua vida. De antemão, advirto desde já que ele não foi uma pessoa pública, um grande político, empresário, artista ou intelectual listado no rol da história do Amazonas, nem tampouco um expoente da chamada “alta sociedade”. Era um homem letrado e, à sua maneira, refinado, sim, com toda a certeza. Mas, sobretudo, era um homem comum, no que este adjetivo carrega de melhor em sua conotação. Um homem bom, um homem doce, um homem decente, um homem ímpar: meu inesquecível avô materno, Henrique de Souza.
Nordestino “de boa cepa”, nascido em 15 de março de 1898, numa pequena propriedade rural da vila de Estivas (atualmente um distrito do município litorâneo de Extremoz), no Rio Grande do Norte, não muito distante da capital potiguar, Natal, no seio de uma família de pobres agricultores, vovô Henrique, apesar da falta de recursos financeiros de seus pais, teve uma infância sadia, crescendo como menino livre (no melhor sentido da expressão) nas areias da bela e selvagem praia de Muriú, em meio à faina diária dos pescadores e à natureza exuberante – marcada não apenas por belíssimas praias de areia fina e alva, mas também por dunas, falésias, lagoas, restingas e manguezais - que caracteriza tantas e tantas vilas de caiçaras espalhadas pela costa nordeste do Brasil, bafejada pelos tépidos ventos alísios que sopram incessantemente do sul do Oceano Atlântico.
Dono de uma aguçada sensibilidade, como sói ser da natureza de todos aqueles nascidos sob o signo de Peixes, Henrique, desde cedo, demonstrou um nítido pendor para as Letras, e, mesmo sem ter tido acesso a um ensino de nível superior – meta praticamente inatingível para um humilde “provinciano”, à época – conseguiu, graças a seus méritos pessoais e ao seu próprio esforço, vencer paulatinamente as limitações impostas por sua condição sócio-econômica e seu grau mediano de escolaridade. Por volta dos quinze anos, em meados da década de 1910, já órfão de mãe e residindo com sua avó em Natal, enveredou, como tantos jovens ilustrados de seu tempo, pelo jornalismo, empregando-se como colaborador em A República, um dos periódicos de maior prestígio daquela capital. Um ofício pelo qual tomou evidente gosto, uma vez que, pouco tempo depois, já se encontrava residindo e trabalhando na Imprensa Oficial da capital do Estado vizinho, a Cidade da Parahyba (como então se grafava o nome da atual João Pessoa); e casado com sua primeira esposa, a paraibana Maria Freire, com a qual gerou nada menos que cinco filhos, uma prole dentro do padrão das famílias de classe média no Brasil, até o início dos anos 1950. Tudo dentro “dos conformes”, para usar de um jargão nordestino muito típico, na vida de um jovem talentoso e denodado, mas sem muitos recursos, ainda em início de carreira.
Nessa época, início da década de 1920, Henrique, além de dar vazão ao seu pendor de literato diletante, compondo versos aqui e acolá – um predicado comum a muitos nordestinos, dotados que são de uma natural “veia poética” -, procurou se especializar num ofício técnico que, dentro do espectro de abrangência do mesmo métier editorial, lhe garantisse um salário fixo, de sorte a propiciar o sustento de sua recém-formada família: as artes gráficas. Afinal de contas, qualificar-se como tipógrafo, num Brasil que, proporcionalmente aos tempos atuais, podia ser classificado como um “país de leitores”, não era para qualquer um. Ao contrário, era uma profissão extremamente valorizada e relativamente bem remunerada, se levarmos em conta o contexto geral de outras atividades de cunho técnico ou artesanal, igualmente em evidência na cena urbana daquela época.
Assim, devidamente gabaritado para tal, não tardou para que o jovem gráfico, na faixa dos seus vinte e poucos anos recebesse uma tentadora proposta de trabalho, vinda, não por acaso, do órgão de Imprensa Oficial de uma paragem muito mais longínqua: Manaus (ou Manáos, como era grafada à época), situada a mais de três mil quilômetros de distância de sua terra natal, cidade outrora bastante próspera nos áureos tempos da extração da borracha, mas que, a despeito da débâcle do ciclo do látex, acentuada desde meados da década anterior, ainda se mostrava uma terra bastante promissora para as “aves de arribação”, daqui e d´alhures, que nela aportassem, a fim de “fazer a vida” no setentrião amazônico. Munido desse espírito esperançoso, Henrique, incontinenti, não titubeou em tomar o primeiro “ita do norte” rumo à capital amazonense, seguindo o caminho percorrido por milhares e milhares de nordestinos, antes e depois dele. E veio acompanhado de toda a família, e de seu amigo e colega de profissão, o paraibano Lucena, que, anos mais tarde, já nos anos 50, abriria na cidade a sua própria e conhecida tipografia homônima.
Recém chegado à cidade, instalou-se com sua esposa e filhos numa casa da Cachoeirinha, então um arrabalde tranqüilo, marcado pela presença de muitas e enormes chácaras, e bem servido em sua infraestrutura por linhas de bondes da Manáos Tramways e pela bela ponte metálica inglesa, construída em 1895 por Eduardo Ribeiro, que até hoje marca o principal acesso ao bairro para aqueles que vêm do centro histórico de Manaus. Não foi uma escolha feliz, contudo. No vizinho subúrbio, naquela época, grassavam de tempos em tempos constantes surtos de impaludismo (malária), uma séria preocupação das autoridades sanitárias; endemia que, num lance cruel do destino, terminou por vitimar quase toda a sua família (a esposa e quatro crianças), com exceção da filha caçula, Auta, então um bebê de colo, que escapou da tragédia apenas pelo fato de ter ficado na Paraíba, aos cuidados de sua avó materna. Henrique também caiu doente, mas, homem vigoroso que era, conseguiu se safar da “foice da magra”.
Não sabemos até que ponto a desdita afetou psicologicamente vovô, sempre um homem muito discreto e nada dado a lamúrias, e quanto tempo ele levou para se refazer de um golpe tão terrível. O fato é que, por volta dos trinta anos, ele era um homem viúvo, sem posses, com uma filha pequena para sustentar e sozinho em uma terra estranha. E teria que recomeçar a vida do zero, custasse o que custasse. Afinal de contas, era um nordestino, um sertanejo, e, “antes de tudo, um forte”, como bem escreveu Euclydes da Cunha em Os Sertões. E, como tal, não se dava por vencido à toa.
Revertido à condição de solteiro, Henrique, no final da década de 1920, instalou-se junto a outros inquilinos do sexo masculino num cômodo alugado – um apartamento, dir-se-ia hoje em dia, se quiséssemos “dourar a pílula” - nos altos do sobrado da Livraria e Tipografia O Velho Lino, na esquina da Avenida Sete de Setembro com a Rua Barroso, situado a poucos passos de seu local de trabalho, a sede da Imprensa Oficial, então localizada ao lado do imponente edifício da Biblioteca Pública Estadual. Foi o modo mais prático que encontrou a fim e economizar tempo e dinheiro, já que não necessitava tomar o bonde para se dirigir ao emprego, no qual, por imposição própria do ofício, precisava adentrar bem cedo, nas primeiras horas do dia, a fim de planejar e supervisionar a diagramação das notas que iriam ser levadas ao prelo. Uma rotina que, diga-se de passagem, se repetiria ao longo de toda a sua existência, até por volta dos oitenta e poucos anos, quando, certamente a contragosto, viu-se premido a se aposentar da profissão da qual tinha tanto orgulho, vergado pelo peso da idade.
Talvez ele não o soubesse àquela altura, mas aquele cenário urbano, o perímetro formado pelo eixo da Avenida Sete de Setembro e pelas ruas comerciais adjacentes, também jamais sairia de sua rotina (e de sua retina) pelas cinco décadas seguintes. Após o hiato passado no Diário Oficial (que não há de ter sido muito longo, até onde sei), Henrique foi contratado pela gráfica rival do Velho Lino, e uma das mais antigas e prestigiadas de Manaus: a famosa Tipografia, Livraria e Papelaria Palácio Real, de propriedade da firma César & Cia. Ltda. Uma empresa de renome e tradição no segmento, fundada em 1892 sob a afrancesada razão social de Palais Royal (que manteve até bem depois dos tempos áureos da borracha), e responsável pela impressão de toda sorte de livros, revistas, opúsculos, anúncios de propaganda comercial, convites e impressos oficiais circulantes no mercado editorial local. Gráfica esta que, não por acaso, ficava situada também na Sete de Setembro, quase na esquina com a Avenida Eduardo Ribeiro. Esta, sim seria a sua “casa” profissional pelo resto da vida, até o início da década de 1980. Ali ele exercia, com proficiência e responsabilidade, o seu nobre mister, como chefe da seção das máquinas da tipografia, imerso em meio ao “teque-teque” frenético e incessante das prensas e ao cheiro da tinta fresca que emanava das oficinas da Palácio Real. E ali ele teve a oportunidade de travar contato, profissional e social, com alguns dos maiores intelectuais de Manaus, dos quais editava os livros por eles recém-lançados, com todo o esmero que seu ofício exigia, e com todo o prazer que seu diletantismo literário lhe proporcionava. Esse oportuno e singular convívio com a elite pensante da terra, não raro, desdobrava-se em outros bônus, como, por exemplo, os ingressos gratuitos que, vez por outra, os amigos e clientes ligados à seara cultural lhe forneciam para peças de grande prestígio em cartaz no Teatro Amazonas, excursionando em tournée desde o sul do país, e estreladas por atores do calibre de um Procópio Ferreira (Deus lhe Pague) ou de um Rodolfo Mayer (em seu famoso monólogo As Mãos de Eurídice). E vovô, claro, “não se fazia de rogado”, a elas comparecendo sempre que pudesse, invariavelmente acompanhado por minha tia Marluce, sua primogênita, já que vovó não era muito adepta da ancestral arte de Eurípides e Sófocles, preferindo muito mais as populares matinées e soirées cinematográficas no Guarany e no Polytheama.
Esses interlúdios de lazer, todavia, eram esporádicos, pois vovô era, acima de tudo, um operário, ainda que gabaritado. E um operário que trabalhava muito. Trabalho duro, que lhe consumia longas horas pela manhã e pela tarde. Nem por isso, Henrique descurava da sagrada hora de descontração, ao final do expediente – a happy hour, como se diz hoje em dia - para tomar uma cerveja XPTO bem gelada, ao lado dos amigos, no Bar Americano, no Bar Avenida ou na Bolsa Universal, alguns de seus botequins preferidos, e dos mais bem freqüentados à época. Assim como não descurava igualmente do cuidado com sua aparência, através da indumentária. Sempre vaidoso, no auge de sua vida adulta, entre as décadas de 1920 e 1950, trajava-se de forma impecável para ir ao trabalho. Todos os dias, “desfilava” pelas calçadas da Sete de Setembro envergando bem cortados ternos de linho branco, sapatos de verniz (comprados nas sapatarias Aronne ou Natal), chapéu de massa à cabeça, charuto à boca, o alfinete de gravata com um brilhante reluzindo ao sol, e, no braço, uma elegante bengala com o cabo estilizado em forma animal. Um perfeito dandy, que evocava, dentro da sociologia regional, a figura clássica do “coronel de barranco”. Daí o apelido dado pelos amigos (que ele, no íntimo, apreciava) e que o acompanhou pela vida afora: “Coronel” Henrique de Souza.
Tanto garbo e elegância, reunidos na figura de um viúvo, “balzaquiano” e “remediado”, não passavam, claro, despercebidos pelas “casadoiras” moçoilas da época, e Henrique teve seus namoricos aqui e acolá, sendo inclusive alvo de disputa por parte de duas irmãs, Albina e Olívia Campello (que vêm a ser, inclusive, minhas primas distantes, pelo lado paterno). Mas, ao fim e ao cabo, nenhuma das duas levou a melhor, já que o charmoso Henrique, com sua tez trigueira e seu ar galante (lembrava vagamente o cantor e compositor baiano Dorival Caymmi), já estava “de olho comprido” numa jovem itacoatiarense de seus 18/19 anos: minha futura avó materna, Marina Pereira da Costa, ou simplesmente Maura, seu apelido familiar desde a mais tenra infância. Muito bonita, residindo então com parentes numa casa simples do bairro dos Tocos (atual Aparecida), Maura chamava a atenção desde mocinha, com seu porte naturalmente altivo, sua pele muita alva, seus cabelos castanhos, cortados à altura da nuca no estilo demi garçon; e seus faiscantes olhos verde-piscina, que certamente deviam evocar no poético espírito de meu avô imagens dos translúcidos mares de sua terra potiguar natal. Conheceram-se, como vovó sempre lembrou com ternura, ali por meados dos anos 30, num baile do Caixeiral, o clube dos “caixeiros” (como então se designavam os empregados do comércio, ou comerciários), e não se largaram mais. Não sei quanto tempo durou o namoro e o noivado, que, com toda a certeza, devem ter sido relativamente curtos e caracterizados por toda a formalidade exigida pelos padrões morais e sociais da época. Afinal de contas, vovó era uma “moça de família”; e vovô, um verdadeiro cavalheiro, muito cortês e respeitoso, e sem qualquer laivo de cafajestagem. O romance há de ter sido também - como mandava o figurino, e em sendo protagonizado por um escriba de mão cheia como vovô - abastecido por cartas e mais cartas trocadas entre ambos, recheadas “com açúcar e com afeto”, como diria Chico Buarque, e entremeadas por delicados sonetos de amor de lavra de Henrique (que vovó, se os guardou, jamais compartilhou voluntariamente com seus descendentes, sempre muito ciosa de sua privacidade que era). Apesar de bastante jovem, Maura era uma garota bastante decidida, e muito madura para sua idade. Era a mulher que vovô buscava para, enfim, reconstruir sua vida, na cidade que adotara para si uma década antes. Feito o pedido de casamento aos pais da moça (meu bisavós, Adelino e Carmina), uniram-se, pois, pelos sagrados laços do matrimônio, em 3 de setembro de 1936. Tiveram seis filhos e foram muito felizes, apesar dos naturais percalços e das dificuldades inerentes ao lar encabeçado por um gráfico e uma costureira, que precisava, com trabalhos esporádicos, ajudar seu marido no sempre apertado orçamento doméstico. Uma história comum. Uma bonita e digna história comum, em tudo e por tudo similar a de tantas e tantas famílias Brasil afora, num tempo em que os “dinheiros”, o sonho da casa própria – este realizado muito tardiamente, quando vovô já havia ultrapassado os 60 anos -, os luxos e as facilidades de toda ordem não eram nada acessíveis à maioria da população (tal como se vê nos dias atuais). Nem tão importantes, tampouco, para que uma família se fizesse sólida, estruturada em valores reais e moldada nas adversidades do cotidiano da vida real.
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Quando nasci, em 1969, meu avô, aos 71 anos, já era um homem de idade avançada, para os padrões daquela época. Mesmo assim, devido ao fato de ser o neto mais velho, e de ter vivido toda minha infância junto de meus avós maternos, cercado de todo o carinho e a atenção que uma criança merece, tive a sorte de conviver bastante com o velho Henrique. Muito menos do que eu gostaria, pois meus interesses infantis naturalmente eram outros, e, claro, eu não tinha maturidade para perceber nem para sorver, na sua plenitude, toda a riqueza humana e a experiência de vida que residiam naquele senhor bonachão, rijo como “pau de aroeira”, e que, a despeito dos anos, nada perdera do vigor físico e da disposição para o trabalho que, segundo depoimentos de minha mãe e de meus tios, sempre foram a tônica de sua personalidade. Continuava a ir regularmente à livraria, cumprir seu expediente diário, percorrendo o mesmo trajeto, ao longo da Avenida Sete de Setembro, que palmilhara a vida inteira; e vislumbrava, certamente com espanto, as sensíveis mudanças de uma cidade que rapidamente abandonava o seu outrora tranqüilo cotidiano, naqueles primeiros anos pós-Zona Franca. Ao chegar, depois da faina, entregava-se com prazer aos seus hobbies domésticos. Pequenos prazeres, que, invariavelmente, traíam a sua origem nordestina, como a sesta após o almoço, deitado numa boa rede de algodão cru – um ritual extremamente saudável, aliás, que eu também me dou ao luxo de manter até hoje, graças a Deus. Outra “mania” sua era a contumácia em regatear (tentar jogar pra baixo) o preço dos produtos oferecidos por seus fregueses habituais – os inúmeros vendedores de peixes, porcos, aves, “carne de caça” (paca, tatu, veado, etc) e toda sorte de utensílios que, vez em quando, batiam à porta de sua casa, munidos de seus balaios, tabuleiros e caixas, para mercadejar seus víveres e traquitanas, numa negociação misturada com “papo fiado”, que, a depender da hora do dia e do interesse de vovô (pela venda ou pela “prosa” do vendedor), podia se estender um pouco além do normal.
Outro costume trazido por vovô de sua terra de origem, e que muito me aprazia observar – me fascinava, melhor dizendo -, era o amor e o cuidado que ele devotava à sua coleção de pássaros – um pequeno aviário de espécimes exóticos e nativos, disperso por cerca de trinta gaiolas, se não me engano, enfileiradas ao longo do pátio interno da velha casa da Rua Lima Bacury, nº 247. Gaiolas grandes e pequenas, redondas e quadradas, de madeira ou de metal, dependuradas nas paredes ou soltas no ar, presas apenas por grandes ganchos em forma de “S”. Cada uma delas habitadas por aves exóticas e canoras, pequenos seres emplumados e multicoloridos, que tornavam aquele recanto do casarão, sempre adornado também por muitos vasos de plantas, um lugar extremamente agradável se estar, tanto para os olhos quanto para os ouvidos. Eram tantos gorjeios, trinados, chilreados... Saídos dos bicos de periquitos australianos, canários belgas, canários-da-terra, curiós, golinhas e pintassilgos. Sem falar nas aves raras, vindas do Nordeste ou do interior do Amazonas, que se destacavam tanto pela bela plumagem quanto pelo canto excepcional: o azulão, o galo-de-campina, a graúna, o corrupião, o rouxinol do Rio Negro e até mesmo um esplêndido galo-da-serra - este, com sua crista arredondada e suas penas de um alaranjado iridescente, era o meu favorito dentre todos, esteta que sempre fui. Além de me encantar com os múltiplos passarinhos da criação, e com cada nova encomenda que vovô recebia de seus fornecedores (estamos a falar de um tempo em que não havia qualquer fiscalização ambiental a esse respeito), gostava também de ver o carinho que ele desvelava aos bichinhos, tirando parte de seu tempo livre, geralmente aos sábados à tarde, para, uma vez sentado e munido de toda a paciência do mundo, dedicar-se a limpar com muito zelo as barras das gaiolas, lavar os cochos e enchê-los de água e alpiste, acariciar suas penas e tratar as avezinhas a “pão-de-ló”, à base de frutas, maxixe, gema de ovo e outros mimos. Uma cena que, tirante o lamento de ver as aves encarceradas, deixaria enternecido qualquer defensor “xiita” dos direitos dos animais. Era deveras encantador aquele ritual!
Sob outro prisma, minha curiosidade infantil também se voltava para outro passatempo diário de vovô, fumante inveterado que era, mas com muita distinção e elegância. Era o ritual que envolvia a metódica limpeza de seu cachimbo, a preparação do fumo, e, por fim, a inspeção e a arrumação de suas lindas latas de tabaco importado, que ocupavam parte da despensa da casa, verificando sempre se o produto estava bem embalado e protegido da umidade ou do ataque de brocas e fungos, ao mesmo tempo em que abria as latas para sentir-lhes o aroma, uma por uma. Sim, pois o tabaco de boa qualidade, pelo fato de ser misturado a finas especiarias, rescende a um suave perfume adocicado, fragrância que - ao contrário dos fedorentos cigarros - constitui parte do prazer dos adeptos (cada vez mais raros) dos cachimbos e charutos. E vovô apreciava ambos, sendo a norte-americana Half & Half, aromatizada com notas de anis e cardamomo, sua marca de tabaco preferida, segundo a recordação de meus tios.
Talvez devido ao seu avançado grau de miopia (ou astigmatismo, não me lembro agora), não me lembro de vovô lendo grandes textos com freqüência durante minha infância. Mas não erro em afirmar que em outros tempos ele fora um leitor contumaz, com toda a certeza. E a prova disso era a sua sortida estante – um dos meus “parques de diversões” naquela época – repleta de títulos os mais variados, desde as coleções completas dos Sermões do Padre Vieira e dos romances de Machado de Assis e Eça de Queiroz, até revistas e livros avulsos dos mais diversos gêneros, principalmente coletâneas de poesia de autores potiguares e amazonenses; muitos deles de capa dura, bem editados e encadernados pela Palácio Real, e com o inconfundível autógrafo de vovô na folha de rosto, com suas letras ligeiramente tremidas. Embora não os tenha lido todos àquela altura (nem mesmo a metade, talvez), em todos passava sempre uma vista d´olhos, ao chegar da escola ou depois das brincadeiras, admirando ora a excelência da edição e da impressão, ora a beleza da capa e das gravuras internas, ora a textura e o cheiro do papel; e me deixava levar, a esmo, por horas a fio, pelo mundo encantado das palavras e da riqueza da língua portuguesa. Hoje, passados quase cinqüenta anos dessas primeiras “emoções orgásticas” literárias, tenho plena noção de que foi ali, precisamente ali, imerso na pequena estante “mágica” de vovô (e logo depois, na vasta e rica biblioteca de papai) que começava o meu eterno caso de amor com os livros e com a cultura erudita. Esse début eu devo, indiretamente, a ele.
Olhando em retrospecto a trajetória de vida de vovô, chego à conclusão de que, a par de seus indiscutíveis predicados humanos, intelectuais e profissionais, talvez um dos traços mais elogiáveis de sua personalidade, e que muito diz do homem grandioso que ele era, seja o fato de como ele se entregou de corpo e alma – e, principalmente, de coração – à sua nova terra, o Amazonas; e à cidade que elegeu para construir sua nova vida e sua nova família, Manaus. Cidade em relação à qual, diga-se de passagem, vovô jamais dirigiu qualquer palavra de menosprezo ou de crítica chula, tal como proferido por tantos arrivistas que por aqui já aportaram e ainda aportam. Leviandades do tipo: “essa terra só é boa para ganhar dinheiro!”, ou “quero logo fazer o meu pé-de-meia e voltar correndo pra minha terra!”, sem falar de outros impropérios impublicáveis. Nada disso. Nem de longe. Vovô tinha o espírito do verdadeiro migrante, aquele que, por uma combinação de fatores circunstanciais (geralmente adversos), toma a decisão madura, consciente e definitiva de deixar seu torrão natal, sem mágoas nem “contas a acertar”, para ir ao encontro da sua “Pasárgada”, o local imaginário por si idealizado para sua plena felicidade, tal como evocado no clássico poema de Manoel Bandeira.
Nesse sentido, acho eu – tenho certeza, melhor dizendo – que Manaus foi a Pasárgada de vovô. É óbvio que devia sentir saudades ocasionais de sua terra potiguar, com seu belo e vasto oceano de mil tons de azul-turquesa; do sabor doce e suave da mangaba e da seriguela; dos prazeres de uma boa carne-de-sol untada de manteiga-do-sertão; e, claro, da típica prosódia “cantada” do nordestino, com sua cadência, suas interjeições e seu sotaque tão característicos. Mas, apesar disso, não me consta que houvesse algum dia expressado o real propósito de lá se restabelecer de vez. Muito pelo contrário, Henrique rapidamente se fez amazonense e manauara, em todos os sentidos. Frequentava religiosamente o Mercado Adolpho Lisboa todos os domingos, onde degustava e se abastecia de guloseimas (mingau de banana-pacovã, pé-de-moleque, quebra-queixo, tapioca de coco) e de toda sorte de frutas regionais e de pescados de água doce, dos quais entendia e desfrutava de todas as formas possíveis (frito, assado e cozido), tal e qual qualquer caboclo do beiradão. Não por acaso, um de seus pratos preferidos era uma boa e típica tartarugada, servida à farta em todas as suas variantes (guisado, picadinho, paxicá e sarapatel), um acepipe olfativo e gustativo, aliás, imensamente apreciado também por minha querida mãe, “xerimbabo” do velho Henrique, como ela sempre se ufanou, e que também sabia preparar (e degustar) um quelônio como ninguém. Por falar em mamãe, não posso aqui, bem a propósito, deixar de evocar uma das máximas do velho Henrique que ela mais gostava de rememorar, e que trazia consigo como uma carinhosa lição de vida passada de pai para filha: “Afaste-se dos propulsores!”, querendo ele dizer com isso que ela se mantivesse sempre atenta a todos os falsos amigos, “amigos de oba-oba”, evitando sua sedução barata e sua influência nefasta, através de maus exemplos ou maus conselhos que, porventura, pudessem vir a lhe prejudicar doravante. Uma pequena lição de amor, que só mesmo aqueles que nos amam com uma intensidade imensurável – como nossos pais – podem nos transmitir.
Como bom menino caiçara, criado à beira-mar, e depois convertido em “caboco” amazônico, Henrique gostava também de praticar natação e de se refrescar, nos fins de semana, nos inúmeros e límpidos “banhos” de igarapé que circundavam a cidade até os anos 60 (Tarumã, Ponte da Bolívia, Parque Dez, Muruama, Guanabara, Tucunaré, etc). Um hábito atávico e salutar, do qual a minha geração e as seguintes foram privadas, infelizmente, por óbvios motivos. Mas de suas habilidades como nadador sou testemunha ocular, como pude atestar certa feita, na piscina de nossa casa, quando vovô, já com seus oitenta e tantos anos, nela mergulhou de ponta-cabeça (de uma altura de três metros), indo varar na margem oposta, debaixo d´água, de um fôlego só. Uma exibição atlética que nos deixou a todos – vovó, os filhos, os netos e demais agregados – atônitos na ocasião, boquiabertos com o tremendo vigor físico e com a habilidade ginástica de vovô. Ele era mesmo um “touro”, como se costumava dizer. Ou, melhor dizendo, um velho elefante, forte, imponente e respeitável. Um elefante que, depois de uma bela jornada na vastidão da savana africana, assentou-se um dia, de forma tranqüila e serena, no recôndito de sua caverna, para o repouso final. Assim foi a passagem do “velho elefante” Henrique, tranqüila e serena, na sua “Pasárgada” à Rua Lima Bacury, nº 247, aos 86 anos, em um triste dia de outubro de 1984.
Hoje em dia, olhando em retrospecto, percebo que muito da pessoa que sou hoje – um ser humano voltado totalmente para o cultivo do intelecto, através da leitura, da escrita e da percepção do mundo à minha volta – devo, de uma forma indireta, a esses dois homens singulares, esses dois piscianos maravilhosos, que me marcaram tão profundamente: meu pai, Jefferson Péres; e meu avô, Henrique de Souza. E o mais gratificante é constatar que o exemplo de ambos – principalmente no caso de vovô - me foi transmitido não através de autoritárias e enfadonhas lições de moral, de um modo austero e repressor, mas sim por meio do mero e diuturno exercício de observação que um infante lança em relação a um adulto (crianças são sempre argutas observadoras do seu entorno, e jamais devem ser tratadas como tolas pelos mais velhos). Eu gostava de praticamente tudo na personalidade de vovô: seu senso de organização, sua meticulosidade com os mínimos detalhes, seu fino senso de humor, seus modos simples e afáveis, seu respeito pela casa enquanto lugar de descanso e de harmonia familiar, seu jeito lhano e cavalheiresco, sua aversão a brigas e polêmicas de qualquer gênero, e seu apreço pelo silêncio - ele “pulava” da cadeira, por exemplo, sempre que alguém, de forma rude e mal-educada, alteava a voz desnecessariamente ou batia o portão da rua com mais força. Era, enfim, um homem cheio de predicados, sábio, justo, sensato e extremamente respeitoso com seus semelhantes. Dele guardo e guardarei sempre a mais terna das lembranças; e também o mais doído lamento, pelo pouco tempo que, já em minha plena consciência infanto-juvenil, pude desfrutar de seu convívio. Mas seu arquétipo masculino me serve de baliza até hoje, e sua presença imaterial permanece comigo, de uma forma cada vez mais intensa e constante, à medida que a idade avança e os anos de separação física se alargam. Assim como, em minha fé cristã, creio que permanecem em nossas vidas todos aqueles que um dia amamos, e que nos amaram verdadeiramente. Nossos “avatares”, nossos “guardiões”, nossos “anjos”, o nome que queiram dar. E que bom que é assim. Como ensinou Santo Agostinho, “a morte não é nada”, mas, tão-somente, o “outro lado do espelho”.
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Artigo publicado em 08.12.2024

FITZCARRALDO – O FILME, O HOMEM E A REINVENÇÃO DO MITO
Por Ronald Péres
Na primavera europeia de 1982, despontava no écran do Festival de Cinema de Cannes, na Riviera Francesa, um dos filmes mais aclamados naquele ano pela crítica especializada. Uma co-produção entre Alemanha e Peru, que concorreu com destaque e foi premiada em diversos certames internacionais. Uma película épica, seja pelo seu enredo semilendário, de fundo histórico; seja pelas atribulações e pelos pitorescos lances de bastidores que envolveram a filmagem de muitas de suas icônicas cenas, rodadas em Manaus e em lugares ermos da floresta amazônica peruana. Uma estória fascinante, ambientada no final do século XIX, durante o mítico Ciclo da Borracha, e que terminou, por sua vez, por alimentar e reinventar velhos mitos daqueles tempos idos. O nome do filme: Fitzcarraldo.
Dirigido pelo alemão Werner Herzog – cineasta que, dez anos antes, em 1972, havia construído seu prestígio com outro épico, Aguirre, a Cólera dos Deuses (Aguirre, der Zorn Gottes), igualmente calcado num episódio histórico da Amazônia – Fitzcarraldo narra, de forma altamente fantasiosa, a saga de um rico “barão da borracha”, o irlandês Brian Sweeney Fitzgerald, alcunhado pela corruptela de “Fitzcarraldo” pelos cidadãos de Iquitos, pequena e próspera cidade amazônica peruana na qual ele construíra sua fama e fortuna. Apesar de bem sucedido na vida e respeitado em sua comunidade, Fitzcarraldo tem pretensões ainda mais altas. É um homem culto, aficionado por música lírica, e, em seus devaneios de grandeza, sonha em construir uma grande opera house naquela remota localidade peruana, tão fascinado que estava pela beleza e opulência do Teatro Amazonas, recém-inaugurado em Manaus, a “capital mundial da borracha”. A fim de arcar com seu ambicioso projeto, não mede esforços, à custa de sua saúde financeira, física e mental; e organiza uma dispendiosa expedição fluvial aos altos e remotos rios da bacia amazônica peruana em busca de uma inexplorada região rica em árvores gomíferas, situada acima das perigosas corredeiras do Rio Pachitea, afluente do Ucayali, no Alto Amazonas. Uma reserva de látex tão preciosa que o ambicioso e audaz cauchero irlandês não hesita, nem por um instante, em se lançar numa empreitada insana e racionalmente desencorajadora: conduzir seu barco a vapor – içado e arrastado pela força de centenas de índios, com a ajuda de um engenhoso mecanismo - através do istmo (estreito de terra) que separa os dois rios; repetindo um estratagema similar ao utilizado pelo sagaz sultão turco Mehmet, quando da conquista de Constantinopla, em 1453.
A epopeia pode ser dividida em três partes: o prólogo, de mais ou menos uns vinte minutos de metragem, pondo em evidência a idiossincrática personalidade de Fitzcarraldo e as ambições que o movem; o “recheio” do filme, mostrando a árdua preparação da expedição e os naturais conflitos humanos nela envolvidos; e, finalmente, a jornada em si, na qual o protagonista, a essa altura irracionalmente obcecado em sua meta, parte em sua odisseia amazônica, debatendo-se com toda sorte de adversidades físicas e psicológicas, e não se furtando a agredir ferozmente qualquer um que ouse contestá-lo ou diante dele porventura se interponha. Um homem enlouquecido em sua megalomania, revertido a um estado quase bárbaro, tão selvagem e indômito quanto a grandiosa floresta equatorial que o cerca, que o impulsiona e que o aprisiona em seu grandioso e operístico delírio. Mutatis mutandis, é como se Herzog, resgatando em sua obra cinematográfica o mote e a personagem de seu filme anterior, “ressuscitasse” o mentecapto Lope de Aguirre, o sanguinário explorador espanhol do século XVI, na figura do visionário (e igualmente insano) Fitzcarraldo do século XIX. E a cena final, com a chegada do barco de Fitzcarraldo no porto de Iquitos, e este triunfalmente postado na proa, ao som de uma ária de ópera cantada por Caruso em um disco tocado no gramofone, é inesquecível, de uma beleza visual digna dos melhores clássicos de Fellini.
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Caso tivesse optado por rodar um filme de caráter documental, Herzog não teria muito trabalho em seu roteiro, uma vez que a personagem histórica que serviu base à concepção do anti-herói por si retratado no cinema teve uma vida muito mais interessante e rocambolesca que seu homônimo fictício; uma biografia que renderia não um filme, mas uma série completa de vinte ou trinta capítulos. Seu verdadeiro nome de batismo era Isaías Fermín Fitzgerald López, nascido em San Luís de Huari, na região centro-oeste do Peru, em 6 de julho de 1862, filho primogênito de uma peruana e um marinheiro mercante norte-americano de origem irlandesa. Criado por seu pai para ser seu sucessor empresarial, Isaías teve acesso aos melhores colégios de seu país, e, por volta de 1878, foi enviado aos Estados Unidos, para se graduar em engenharia naval. De retorno ao Peru - ainda um jovem inexperiente, mas muito ambicioso - logo enveredou, à guisa de “batismo de fogo”, numa temerária exploração comercial ao longo da calha do Rio Marañón, uma aventura que quase lhe custou a vida, em razão de um grave ferimento, que lhe causado por uma punhalada traiçoeiramente desfechada contra seu ventre, no calor de uma briga, numa mesa de jogos de azar. Refeito do golpe, depois de três meses de convalescença, voltou ao lar, onde constatou, para seu desgosto, que seu pai – devido à tremenda angústia causada pela falsa notícia da morte do filho - também caíra seriamente enfermo, vindo a falecer não muito tempo depois. Sentindo-se culpado e envergonhado perante sua mãe e seus irmãos por ter sido o vetor involuntário de tal infortúnio, resolveu partir definitivamente de seu pequeno pueblo natal, sem rumo certo, levando consigo mapas detalhados da bacia amazônica peruana, cartas hidrográficas que seu genitor acumulara ao longo de sua vida de navegante, e que lhe permitiriam, no futuro, alcançar seus altos objetivos mercantis.
Na ocasião, estava em curso a Guerra do Pacífico (1879-1884), travada entre o Peru e Chile pela posse da franja costeira ao longo do deserto do Atacama. Movido pelo senso de patriotismo e por um natural ímpeto juvenil, Isaías se dirigiu à região de Cerro de Pasco, a fim de se juntar a um regimento de soldados voluntários. Tendo saído apressadamente da casa paterna sem seus documentos, e estando de posse de tantos mapas, acabou sendo detido durante um incidente banal pelo próprio Exército peruano, e mantido encarcerado por vários meses, sob suspeita de ser um espião chileno. Interrogado, acareado e sem conseguir provar sua identidade e sua real condição, Isaías acabou por ser julgado e condenado sumariamente por uma corte marcial, e teve sua execução por fuzilamento marcada para o dia 4 de novembro de 1879. Mas foi salvo “à hora do gongo” pela pronta intervenção de um frade, Frei Carlos, a quem sua família hospedara no passado, e que, visitando-o em sua cela para lhe conceder a extrema-unção, o reconheceu e o identificou perante as autoridades, salvando assim sua vida. Extremamente comovido e grato pelo gesto do religioso, Isaías posteriormente trocaria oficialmente seu primeiro nome de batismo, passando a assinar como Carlos Fermín Fitzcarrald, sendo este último, como dito, a versão hispânica de seu sobrenome paterno. Uma homenagem dupla: ao frade peruano, seu redentor; e também a São Carlos Borromeu, santo italiano de sua devoção, cujo dia consagrado, 4 de novembro, por uma estranha coincidência, era a mesma data em que o “milagre” de sua libertação ocorrera.
Uma vez liberto e dono de si novamente, mas ainda amargurado e ressentido pela injustiça e pelos sofrimentos pelos quais passara, Fitzcarrald decide seguir o conselho de seu benfeitor, Frei Carlos, e “sumir do mundo” por uns tempos, internado-se nas matas virgens do departamento oriental de Loreto (correspondente, em sua totalidade, à maior parte da Amazônia peruana), tido como a nova “terra da promissão”, onde medravam espontaneamente milhares de espécimes de caucho (Castilla elastica) e de seringueira (Hevea brasiliensis), ambas produtoras de látex, o “ouro branco”, matéria-prima da borracha, a valiosa ‘commodity’ que, ao lado do aço e do petróleo, iria moldar na centúria seguinte a face das cidades e das economias dos países desenvolvidos, graças, principalmente, ao advento da indústria automobilística. Imerso durante dez anos na vastidão da floresta loretana, Fiztcarrald – após se familiarizar com os nativos nas técnicas de coleta, armazenagem e beneficiamento do insumo – refaz totalmente sua vida, emergindo como um homem próspero, dono de um imenso patrimônio fundiário e financeiro, e um dos mais poderosos barones del caucho da década de 1890, auge do ciclo gomífero.
Uma riqueza que podia ser mensurada pelo luxo do casarão que mandou edificar em plena selva, na confluência dos rios Ucayali e Mishagua, para lhe servir de morada e centro de operações. Erguida em 1892, era uma verdadeira hacienda aristocrática, toda estruturada em madeira nobre (cedro), com três pavimentos, largas varandas e 25 cômodos. Possuía pomar, horta e um lindo jardim com exóticas orquídeas e outras flores raras, cultivados por empregados chineses trazidos especialmente para tal finalidade. Ao redor da propriedade dispunham-se quarenta casas (onde residiam jagunços, capatazes e colonos seringueiros brancos), alojamentos coletivos para os índios, estábulos de animais, viveiros de caucho, armazéns repletos de borracha e o clássico “barracão de seringal”, onde eram comercializadas interna corporis as mais diversas mercadorias (de uma simples agulha ao mais sofisticado champagne francês), desembarcadas pelo cais construído às margens do rio. Nesse aparatoso e auto-sustentável palacete silvestre, Fitzcarrald – apelidado pelos seus homólogos seringalistas de “o senhor feudal do Ucayali” – reinava absoluto, em companhia de sua jovem esposa, a peruana Aurora Velazco, tida como a mais bela mulher de Iquitos, enteada do seringalista brasileiro Manuel Cardoso da Rosa, proprietário da firma Cardoso & Cia. e sócio do jovem cauchero nas transações do comércio de borracha ao longo do Ucayali. Unido desde 1890, o casal teve dois filhos varões, Frederico e José, desde cedo mandados a estudar em França pelo pai.
Com o passar dos anos, o nome Fitzcarrald se converteria numa “lenda viva” ao longo das calhas dos rios Ucayali, Urubamba, Pachitea, Apurimac, Tambo e Madre de Dios; regiões nas quais, além de fazer fortuna, também se notabilizou por ter fundado uma cidade, Puerto Maldonado (situada à margem daquele último rio), e pelos seus métodos pouco ortodoxos de arregimentar mão-de-obra para seus seringais. Segundo a versão corrente entre seus contemporâneos, submeteu à servidão centenas de indígenas peruanos, principalmente das etnias Piro e Campa (esta também denominada de Ashaninka, com parte de sua população ainda vivendo nas matas do Acre). Índios recrutados como seringueiros, carregadores e lavradores, e que eram cooptados em suas aldeias por astutos emissários de Fitzcarrald, à base de presentes, ameaças, falsas promessas e mistificações baseadas em velhas crenças, que associavam a figura do seringalista como sendo o “filho do Sol” ou o amenchagua (reencarnação) de um líder messiânico indígena dos tempos coloniais. Dada a complexidade do ser humano, é forçoso mencionar, entretanto, que, a despeito de tais pecados, Fitzcarrald era uma pessoa dotada de inúmeros predicados pessoais. Segundo seu biógrafo, o escritor Ernesto Reyna, “(...) sabia fabricar canoas, fundir e trabalhar ferro, entendia de mecânica, calafetagem e pintura, (...) era um pouco médico, botânico, cartógrafo, engenheiro e marinheiro”. Não bastasse isso, era ainda homem ilustrado, um poliglota. Além do castelhano (seu idioma materno), era fluente em português, francês e alemão; e também em várias línguas indígenas peruanas (quéchua, pano, piro, campa, etc), de forma a facilitar o trato com seus subordinados.
O grande ponto de intersecção entre o Fitzcarraldo do cinema e o Fitzcarrald da vida real se dá por ocasião do episódio em que este último - no afã de expandir sua rede comercial e angariar mais lucros – descobre a existência de uma conexão terrestre de apenas onze quilômetros existente entre dois subafluentes dos rios Ucayali e Madre de Dios; e, sempre audaz, decide sondar o terreno visando a abertura de uma rota que, uma vez se provando viável em termos logísticos, poderia no futuro vir a representar uma considerável economia de tempo e de recursos empregados em seus negócios, caso se concretizasse seu intento final, qual seja, o de assentar uma pequena ferrovia sobre o caminho, a fim de transportar a borracha por si comercializada através do atalho entre as duas hidrovias.
Essa passagem natural – desde então assinalada nas cartas geográficas peruanas como o “Istmo de Fitzcarrald” – foi objeto de uma primeira e insatisfatória incursão de reconhecimento em agosto de 1893, com o uso de uma pequena flotilha de simples canoas. Deslocando-se em seguida a Iquitos, Fitzcarrald expõe sua descoberta e às autoridades locais e ao seu sócio e sogro, Cardoso da Rosa; ao mesmo tempo em que tenta, sem sucesso, cooptá-los a aderirem financeiramente ao seu projeto hidroferroviário. Inconformado, adquire um barco a vapor de três toneladas, o Contamana; e monta uma expedição mais ambiciosa, um comboio composto, além do barco principal, por um rebocador e outros pequenos batéis (lanchas e canoas), levando mantimentos e utensílios; e integrado por cerca de mil índios e uma centena de homens brancos. Munido de tal suporte humano e material, retorna ao istmo em junho de 1894, durante o auge do período das cheias (o que muito facilitava o percurso em certos trechos), a fim de vencer o grande acidente natural que antevira na primeira incursão: um enorme morro de terra, de 469 metros de altura, coberto de mata fechada, localizado bem no meio da passagem.
Tal como retratado no filme de Werner Herzog, foi uma façanha épica e insana, que consumiu dois meses em sua consecução. Uma vez desembarcados junto à embocadura do varadouro, Fitzcarrald e sua tropa cuidaram de desmatar e preparar a trilha (de quatro metros de largura), desmantelar o navio, e transportar peça por peça da fuselagem manualmente, aos poucos, através do íngreme aclive. O feito maior foi conduzir morro acima (e depois abaixo) o casco da embarcação, uma peça única em armação de aço, arrastado sobre uma carreira de toras e pranchas de madeira e puxado por cordas e roldanas, manipuladas pela multidão de pobres almas que arregimentara consigo, num esforço hercúleo e megalomaníaco, digno dos tempos da escravidão no Egito antigo. Mas que, apesar dos pesares, foi bem sucedido em sua meta, pois a zona fluvial na qual ele desembocara – e que ele pensara, erroneamente, fazer parte da bacia do Purus – além de riquíssima em árvores de caucho de excelente qualidade, era desconhecida dos demais seringalistas que lhe faziam concorrência, o que lhe abria caminho para que conseguisse favores governamentais em razão de seu pioneirismo exploratório. O périplo, num total de 548 quilômetros, foi completado no dia 4 de setembro de 1894, com a entrada do Contanama na Bolívia, atracando no seringal de propriedade do poderoso cauchero Nicolás Suárez. Foi com assombro que este último vislumbrou a surpreendente chegada da embarcação em suas terras, e, mais ainda, a figura imponente de Fitzcarrald, de pé, postado orgulhosamente na proa do barco, vestido de negro e envergando um elegante chapéu “panamá”. Uma salva de 21 tiros de canhão foi disparada, para celebrar a glória do Peru e a sua própria conquista pessoal.
Associado a Suárez, e também a outro próspero seringalista boliviano, Antonio Vaca Díez, Fitzcarrald acabou por formar um verdadeiro trust amazônico da borracha, cujo capital foi investido na compra de modernos barcos a vapor com maquinário possante, casco de aço de pouco calado (fundo chato) e rodas na popa, fabricados na Inglaterra; e na melhoria logística do istmo por si descoberto, inicialmente por meio da abertura de uma estrada de terra, a fim de embarcar as partidas de borracha pela nova rota de navegação recém-estreada pelos associados, e que se provara afinal economicamente viável, pois diminuíra bastante os custos do frete no transporte do látex extraído na Bolívia, ao evitar a perigosa calha do Rio Madeira, com suas inúmeras cachoeiras e corredeiras, que tanto prejuízo causava aos navegantes. Também cuidou Fitzcarrald de fomentar a fixação humana na zona selvagem recém-explorada, com o estabelecimento de comunidades ribeirinhas e pequenas colônias agrícolas, que produziam arroz, milho, banana, etc., como sustentáculo ao trabalho dos seringueiros. Em reconhecimento ao seu arrojo e empreendedorismo, o Ministério da Guerra peruano concedeu a Fitzcarrald, em novembro de 1896, o privilégio da exclusividade de navegação comercial pelas calhas do Alto Ucayali, Urubamba, Manu e Madre de Dios. Sacramentava-se, assim, de fato e de direito, o seu propalado status de “Rei da Borracha” da Amazônia peruana.
A estrada para o sucesso estava, literalmente, traçada. Faltava apenas pavimentá-la com os almejados trilhos de aço, que conduziriam os sonhos do visionário Fitzcarrald a novos píncaros. O “voo do condor”, todavia, seria abatido quando este apenas preparava para alçar-se às alturas. Em 9 de maio de 1897, ao singrar as turbulentas águas do Urubamba, justamente no momento em que transportava para o istmo o material destinado à construção de sua almejada ferrovia, Fitzcarrald pereceu afogado, após perder o comando de seu barco - destroçado e naufragado nas pedras das corredeiras do rio - e tentar, sem sucesso, salvar a vida de seu sócio, Vaca Díez. Trágico e irônico final de um homem de espírito aventureiro, de um empresário arrojado e de uma personalidade singular, absolutamente “fora da curva”, como se diz hoje em dia. Morto precocemente aos 35 anos, sua lenda só fez aumentar com o passar dos anos, tanto entre os índios – que associaram o seu súbito desaparecimento a uma espécie de “arrebatamento” divino – quanto entre os brancos da região de Loreto, que, de geração a geração, passaram a propalar e recontar os seus feitos, nas mais diferentes versões. Além do famoso istmo, seu nome batiza ainda a sua província natal, nos Andes peruanos.
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O cinema, com sua grandiosidade e seu intenso poder audiovisual de captar emoções e cristalizar imagens no imaginário coletivo, ainda a está a dever à ambígua figura de Carlos Fermín Fitzcarrald um épico à altura de sua verdadeira trajetória. Mesmo assim, devo dizer que, passados mais de quarenta anos da estreia de Fitzcarraldo (o filme) na tela grande, ainda é com genuína emoção e orgulho que, na condição de manauara e de amazônida, revejo de vez em quando na TV a sua clássica sequência de abertura, composta de um lindo storyboard de mais ou menos quinze minutos de metragem, e que, no resultado final, aprecie-se ou não sua narrativa exageradamente fantasiosa, eterniza toda a mítica criada em torno daquela personagem tão singular, e, por tabela, da Manaus dos febris tempos da borracha. Ela se passa mais ou menos assim:
Numa escura noite de verão amazônico, remando numa tosca canoa regional, aporta na orla da capital amazonense um casal de exóticos “gringos”: o irascível “barão” Fitzcarraldo (encarnado pelo ator alemão Klaus Kinski, pai de Nastassja Kinski, uma das musas do cinema dos anos 80) e sua amante, a alegre cortesã Molly, dona de um bordel em Iquitos (personagem encarnada por ninguém menos que a diva italiana Claudia Cardinale, à época ainda uma charmosa mulher na flor de sua maturidade, aos 43 anos). Embarcada naquela longínqua cidade peruana, a improvável dupla encarara durante dias a fio a “descida” do Rio Amazonas no afã de chegar a tempo de comparecer a soirée de estreia da ópera Ernani, de Verdi, no Teatro Amazonas; uma montagem protagonizada por duas das maiores “estrelas” de sua época: o tenor italiano Enrico Caruso e a atriz francesa Sarah Bernhardt. Uma licença poética, evidentemente, uma vez que tal apresentação, como se sabe, jamais aconteceu, nem aqui nem alhures, posto que os dois célebres artistas jamais se encontraram em cena, até onde se tem notícia; nem tampouco passaram por Manaus algum dia, seja em visita ou em tournée teatral.
Embora fosse apenas um pré-adolescente de 11 anos, lembro-me vagamente do pequeno frisson que se apoderou de Manaus em 1981, ano em que se deu a filmagem das cenas inaugurais da película, rodadas dentro e fora do Teatro Amazonas. Para tanto, foram convidadas por D. Amine Daou Lindoso, então Primeira-dama do Amazonas, diversas senhoras de renome na cidade, integrantes da chamada “alta sociedade”, as quais, evidentemente, não se furtaram – muito pelo contrário! – em envergar pesados figurinos de época para uma breve figuração de poucos minutos na tela. Cada figurante receberia um cachê, que seria devidamente revertido para as obras beneficentes de D. Amine. Mamãe estava lá, muito bonita, posando de dama da ‘Belle Époque’, com seu traje costurado por vovó – um vestido longo de cetim branco, arrematado por uma pelerine de seda ou veludo azul-marinho, salvo engano. Assim como ela, também estava D. Valderez Cabral, uma dileta amiga de nossa família, cujas recordações daquele inolvidável evento ela teve a gentileza de compartilhar, há pouco, com meu irmão Roger, ao contar-lhe, por exemplo, que, num intervalo, ela fora chamada pela equipe de figurinistas do filme. Qual não foi seu espanto quando estes lhe disseram que haviam apreciado tanto sua indumentária que resolveram, de última hora, substituir o figurino da própria La Cardinale pelo dela (!!!). E foi nesse momento que minha querida amiga viu-se ali, no camarim, diante de uma mulher, segundo ela, “absolutamente comum” (!!!), mas que, após um brilhante trabalho de maquiagem, logo transformou-se na diva que todos conhecemos das telas do cinema, exibindo aqueles expressivos e bem delineados olhos cor de avelã.
Naturalmente envaidecidos com seu fugaz “momento Andy Warhol”, os socialites lotaram as cadeiras da plateia, das frisas e dos camarotes do teatro. Afinal de contas, não era todo dia que uma deslumbrante estrela internacional – a bela Cardinale, no caso – podia ser admirada assim, vis-à-vis, pelos “simples mortais” dos trópicos. Sem contar a presença de três outros célebres “figurantes” brasileiros, escalados para uma rápida participação no filme: os atores José Lewgoy (vivendo um estereotipado “coronel de barranco”) e Grande Otelo (como um serelepe maquinista de trem); e o cantor Milton Nascimento (no bizarro papel de um paramentado e mudo “valete” postado à entrada do teatro). Excentricidades dos produtores, que qualquer cinéfilo experimentado e sem crises de recalque releva e tira por menos...
É fascinante revisitar a cena em que Kinski e Cardinale, ofegantes e de mãos dadas, saltam da canoa e, apressados, sobem a escadaria (hoje soterrada) do Mercado Municipal para tomar uma carruagem até a Praça de São Sebastião. Lá chegando, bastante atrasados, adentram igualmente às carreiras o recinto do magnífico teatro, feericamente iluminado pela luz elétrica recém-inaugurada em Manaus. A apresentação já se encaminha para seus momentos finais. No palco, Caruso canta sua derradeira ária diante de uma Sarah Bernhardt (que, na vida real, jamais foi uma cantatrice) exageradamente maquiada, mais parecendo um travesti ou um arremedo de gueixa oriental. As cortinas se cerram e depois novamente se abrem. A sala se acende para a ovação do público. No primeiro plano, sorrindo para a câmera e aplaudindo freneticamente o espetáculo, distinguem-se nitidamente duas notórias filhas da terra, já falecidas, e muito familiares para os manauaras mais antigos: as senhoras Eldah Bitton, com seu característico rosto magro (e que, não por acaso, fora cantora lírica em sua juventude); e Naha Assi Hatoum, mãe do hoje célebre escritor Milton Hatoum. É cinema puro, em grande estilo!
Ao contrário do louro, franzino e medonho Klaus Kinski (que mais se assemelhava ao repulsivo Mr. Hyde criado pela mente fértil do escritor Robert Louis Stevenson), o verdadeiro Fitzcarrald – segundo relatos de seus contemporâneos, e conforme atesta a única fotografia que se conhece de sua pessoa - era um homem viril e bem apessoado, com seus 1,75m de altura, compleição robusta, cabelos castanho-escuros, barba farta e frisada, tez levemente morena e traços faciais tipicamente castelhanos. Notícias históricas dão conta de que ele teve uma rápida passagem por Manaus nessa época, vindo de um périplo através do vale do Madeira, a caminho de Iquitos. Todavia, podemos apenas especular se ele chegou efetivamente a “dar o ar de sua graça” em algumas das primeiras seratas líricas levadas à cena na luxuosa “ópera das selvas’, inaugurada em 31 de dezembro de 1896, apenas quatro meses antes de sua morte. Mas não resta dúvida de que a liberdade poética tomada por Herzog (também roteirista do filme) é uma belíssima alegoria dos grandes dias do apogeu do “ouro branco’, e que termina por consagrar de forma definitiva, na perenidade da arte cinematográfica, vários mitos e várias simbologias ao mesmo tempo, superpostos um sobre o outro e reunidos num só, tal e qual as pitorescas bonecas matrioskas russas: o mito do intrépido Fitzcarrald, o mito do icônico Teatro Amazonas, o mito do legendário Ciclo da Borracha, o mito da exótica Manaus, e, por fim, o mito da misteriosa e indômita Amazônia, que a todos sempre fascinou, e, como se fora a esfinge da mitologia, desafia até hoje seus novos desbravadores a decifrá-la e a conhecê-la por inteiro, em todas as suas nuances. Realidade versus fantasia. História versus lenda. Narrativas amalgamadas, recontadas, revividas e recriadas pela inexorável passagem do tempo e pela suprema força da arte.
Fontes da pesquisa: Fitzcarrald – El Rey del Caucho (1942), de autoria do escritor peruano Ernesto Reyna. Imagens: Rede Mundial de Computadores.
Artigo publicado em 17.11.2024.

Retrato do verdadeiro “barão da borracha” peruano Carlos Fermín Fitzcarrald (1862-1897)
SÉRIE “HISTÓRIA”

AS “DAMAS” E OS “MANCEBOS” DE LOUÇA DE MANAUS – DELICADAS E USURPADAS TESTEMUNHAS DA HISTÓRIA DA CIDADE
Por Ronald Péres
Por mais de um século, elas pairaram, belas, alvas, solenes e imperturbáveis, encarapitadas no alto dos prédios da cidade. Ou, melhor dizendo, sobre as platibandas – as muretas superpostas acima das janelas e da parede frontal, e que servem para disfarçar as coberturas de telhas – de alguns velhos casarões espalhados pelas ruas do centro antigo de Manaus. No raiar do século XX, podiam ser vistas aqui e acolá, fincadas em seus pedestais de forma isolada, em pares, em trios, ou mesmo em grupos maiores, desde a beira do Rio Negro até as imediações da Praça da Saudade. Refiro-me, obviamente, àquelas peças que constituem um dos mais bonitos e menos valorizados acervos remanescentes do glorioso passado manauara: as lindíssimas estatuetas decorativas de louça branca, fabricadas e exportadas durante mais de um século por duas famosas, tradicionais e longevas manufaturas cerâmicas portuguesas: as fábricas de Santo Antônio do Vale da Piedade (1784-1930) e Devesas (1865-1980), ambas baseadas em Vila Nova de Gaia, adjacente à cidade do Porto, na margem esquerda do Rio Douro. Dos fornos de ambas saíam, em série, ano após ano, não apenas objetos de estatuária, mas também outras peças ornamentais do gênero, como vasos, “pinhas”, “compoteiras”, e, claro, os famosos azulejos portugueses, até hoje uma das grandes trademarks daquele país peninsular europeu. Produção essa que foi naturalmente absorvida, em grande parte, pelo mercado consumidor da emergente burguesia brasileira, devido aos fortes laços históricos e culturais de Portugal com sua antiga colônia sul-americana.
Confeccionadas na verdade em faiança, um tipo de louça mais rústica e resistente, propícia à exposição permanente à luz solar e às intempéries, as famosas “estátuas de louça do Porto”, com sua alva textura, de um esmalte ligeiramente vitrificado e refulgente, se destacavam de longe na paisagem urbana de várias cidades brasileiras, superpostas acima das fachadas de vários edifícios comerciais e residenciais, principalmente daqueles construídos na segunda metade do século XIX, já sob a influência da arquitetura neoclássica do Brasil-Império, mas ainda com forte apego ao tradicional padrão construtivo luso-brasileiro, de matriz árabe-mourisca medieval. Presentes nas mais variadas tipologias prediais – as inúmeras casas “de muitas portas” (que abrigavam tabernas e empórios dos mais diversos gêneros), os vastos sobradões “de muitas janelas”, os elegantes solares urbanos, os graciosos chalés suburbanos e até mesmo as vastas propriedades rurais – as estatuetas do Porto eram geralmente conjugadas, no conceito harmônico usual das fachadas oitocentistas, às janelas ogivais e aos azulejos policromados de padrões decorativos florais ou geométricos (de procedência portuguesa, em sua maioria). Entre as décadas de 1840 e 1890, esse era o partido arquitetônico típico de inúmeras edificações de Belém, de São Luís, do Recife, de Salvador, e, claro, da sede da Corte Imperial, o Rio de Janeiro. Isto porque, especialmente a partir do terço final do Segundo Reinado, tornou-se quase que uma chancela obrigatória de elevação do status social, principalmente entre os comerciantes e residentes citadinos bem situados na vida, investir na construção de novos prédios (ou na reforma de antigos imóveis) despidos da velha feição colonial – ou seja, de telhado à vista, dotado de “eira” e “beira”. É nesse período que entra em cena, com toda a força, a voga das platibandas vazadas com carreiras de balaústres e profusamente decoradas com fileiras de estátuas e outros ornatos cerâmicos de procedência lusa. As estatuetas em forma humana eram usualmente (mas não exclusivamente) representações femininas, simbolizando moças aguadeiras (portadoras de cântaros), mulheres guerreiras, deidades da mitologia grega ou alegorias às estações do ano, aos continentes do globo, às artes, às ciências e às atividades econômicas da Humanidade (agricultura, indústria, comércio e navegação). Erudição, cosmopolitismo e progresso. Os grandes valores do ‘fin de siècle’, sintetizados num singelo artefato, ao mesmo tempo artístico, industrial e de apelo universal.
Manaus - cidade cujo desenvolvimento econômico, impulsionado pelas altas receitas da borracha no mercado internacional, praticamente se confunde com o início da República - não teve, em termos quantitativos, a exemplo de sua vizinha Belém, tantos exemplares desse partido arquitetônico, que, já no início do século XX, ia, pouco a pouco, se tornando demodée, identificado ao regime monárquico deposto. Ainda assim, no decênio final daquela centúria, que vai de 1890 a 1900, cerca de duas dezenas de importantes edifícios foram levantados dentro desse característico estilo “luso-tropical” (segundo o rótulo cunhado pelo famoso antropólogo e sociólogo pernambucano Gilberto Freyre), muitos deles coroados pelas graciosas figuras esmaltadas em louça do Porto. Um dos mais antigos, mais vistosos e mais emblemáticos, datado de 1894, é o imponente sobrado de 22 janelas e quase igual número de portas que se ergue defronte ao Rio Negro, na esquina da antiga Rua do Tesouro (atual Monteiro de Souza) com a Praça XV de Novembro (ou Praça da Matriz, para “os de casa”). Sobradão que guarda consigo uma parte expressiva da história do Amazonas, erguido que foi para servir de armazéns e escritório da filial da próspera firma paraense B. A. Antunes & Cia. Ltda., Comissões, Consignações e Aviamentos – uma das maiores exportadoras de borracha, no auge do ciclo gomífero, entre 1890-1910 – e que, após a saída desta da praça de Manaus, por volta de 1913, foi posteriormente adquirido e ocupado pela Booth Steamship Company, companhia de navegação baseada em Liverpool, na Inglaterra. Ela mesma, a famosa Booth Line, integrante da ‘holding’ concessionária do porto de Manaus por 60 anos e responsável, com sua imensa frota de luxuosos transatlânticos, pela conexão direta de Manaus com a Europa, através de linhas regulares de vapores mistos (de carga e de passageiros) que aportavam semanalmente no Roadway. Com a saída de cena definitiva da Booth – cujos últimos navios cargueiros ainda operaram em Manaus até o fim dos anos 70 – foram embora junto com ela todas as estátuas e pinhas que guarneciam o “cocuruto” do prédio, descidas de seus pedestais e embarcadas de volta para o Velho Continente pelos últimos funcionários britânicos responsáveis por “apagar as luzes” da centenária empresa no Amazonas, segundo me relatou recentemente um amigo querido, testemunha fidedigna do aviltante saque perpetrado contra aquele patrimônio. Quanto ao histórico prédio, desnudado de seus delicados “brincos e pingentes”, sobreviveu aos trancos e barrancos pelas décadas afora, convertido em botequim (quiçá também lupanar) de quinta categoria. Vertido no início deste século a um total estado de ruína - assim como os imóveis vizinhos, integrantes do quarteirão que ultimamente se convencionou chamar, impropriamente, de “Complexo Booth Line” – aguarda a prometida recomposição de sua fachada pelo consórcio privado que administra as obras ora em curso no local, a fim de converter toda a quadra num moderno empreendimento mercantil, gastronômico e de serviços. A pergunta que não quer calar, no caso, é: serão repostas réplicas similares às esculturas perdidas? Eu, otimista incorrigível que sou, torço por isso e gostaria muito de acreditar que sim. A ver, como diriam os lusitanos...
A partir da inauguração da moderna Avenida Eduardo Ribeiro, o grande boulevard central da capital da borracha, aberta entre 1892-1896 pelo visionário governador maranhense que terminou por batizá-la com seu nome, começaram a surgir na nova paisagem citadina, num espaço de poucos anos, muitos edifícios comerciais, e vários deles também eram, seguindo a voga do final do século XIX, adornados pelas cerâmicas alegóricas e decorativas portuguesas. Os cartões-postais e reclames antigos atestam que era assim, por exemplo, em duas das esquinas da Avenida com a antiga Rua Municipal (a atual Avenida Sete de Setembro), nas quais se defrontavam dois prédios térreos, do tipo de “muitas portas e sem janelas”, conforme os alcunharam os cronistas do passado. Em um deles se abrigou, nos tempos áureos da borracha, o próspero Canto das Novidades, armarinho de fazendas e miudezas da firma Andrade, Santos & Cia.; e, anos mais tarde, entre 1932 e 1963, o Bar Americano, evocado por tantas gerações de boêmios, estabelecimento gerido pelos imigrantes italianos Michele Massulo, Carlo e Marco Vitale. Fazendo face ao endereço, do lado par da via, se encontrava outro prédio quase gêmeo, com uma carreira de portas abertas para ambos os lados da esquina. Prédio de muitos donos e inquilinos, ao longo de mais de meio século, no qual se instalaram, sucessivamente, a firma Adrião, Barroco & Cia. (de ferragens e utensílios); a prestigiada Pharmacia Studart (na qual foi desenvolvida a fórmula do conhecido “Leite de Colônia”, pelo farmacêutico cearense Carlos Studart), e, já nos anos 60, a frequentadíssima Esquina das Sedas, dos sócios Mamed Assi e Hassan Hatoum, ambos imigrantes libaneses.
Subindo a Avenida, na esquina com a Rua Henrique Martins – o popular “Canto do Fuxico”, como ficaria posteriormente conhecido pela população -, a presença da estatuária de origem europeia era ainda mais ostensiva, e se impunha na ornamentação da fachada de nada menos que três dos edifícios daquele icônico ângulo da urbe, todos eles intimamente ligados à vida social da cidade. Dois deles eram também térreos. No primeiro funcionou a sortida Casa Quintas, empório de gêneros alimentícios e bebidas finas importadas, de propriedade do súdito inglês Percy Vaughan (mesmo local onde, a partir de 1921, viria a se instalar o café Leão de Ouro, de Pinheiro, Pires & Cia). No outro, diagonal àquele - um prédio de bem acabado, com muitas portas arrematadas por bandeiras ogivais - foi uma das primeiras edificações da nova avenida, e teve, desde sempre, uma vida animada e elegante, abrigando sucessivamente a Confeitaria Avenida (a primeira com esse nome, aberta na virada do século pelos sócios espanhóis Abelló e Casanova); o café e restaurante 31 de Janeiro (cenário do público e passional assassinato do deputado Rodolpho Índio de Maués, em 13 de agosto de 1917), e, finalmente, o concorrido bar Ponto Chic, de Alves & Cia., um dos grandes points da rapaziada boêmia entre as décadas de 1920-1950, assim como o vizinho “Leão de Ouro”. Este último ainda subsiste, muito bem conservado, com sua linda e singular marquise de ferro e vidro, que uma alma cretina tentou furtar há alguns anos, mas que, em sequência ao furioso alarde disseminado através das redes sociais, terminou por ser reposta ao seu lugar de origem. Infelizmente o mesmo final feliz não teve o formoso trio de estátuas que adornava sua platibanda, surrupiado “na calada da noite”, lá pelos idos de 1988, sem que uma autoridade ou um cidadão sequer desse um “piu” de indignação àquela altura (nesse sentido, viva o tempo ruidoso e histérico em que vivemos!). Dessas estatuetas eu me recordo nitidamente, pois, em dominicais passeios noturnos de carro, sempre por lá passávamos – eu, meus irmãos e meus queridos e saudosos pais - e parávamos para admirar a beleza do conjunto arquitetônico, tentando adivinhar quais deidades greco-romanas (uma masculina e duas femininas) estariam ali representadas, com seus respectivos atributos. Seriam Vênus, Apolo e Diana? Ou talvez Juno, Marte e Ceres, quem sabe? O fato é que eram os “nossos” deuses pagãos, já incorporados há muito ao nosso singelo panteão urbano manauara, e nenhum maldito vândalo, abonado ou não, tinha o direito de descê-los de seu pequeno e secular “Olimpo”...
O mesmo diabólico espírito bárbaro que – à maneira do godo Alarico ou do huno Átila, devastando a arte clássica da Roma antiga – assolara alguns antes o vetusto e imponente sobrado do outro lado da rua, vasto casarão erigido no final dos oitocentos, e que, até o início dos anos 1960, possuía uma das fachadas mais rebuscadas da cidade, com sua profusão de balcões de ferro fundido, janelas em ogivas, frontões, compoteiras, e, claro, sempre elas, as maravilhosas estátuas de faiança do Porto. Prédio que abrigou diversas lojas conceituadas no andar térreo (a Tabacaria Boer, a Pharmacia Barreira, o Bazar Sportivo, dentre outras, ao longo dos anos), e que, nos altos, sediou o Ideal Clube, entre 1912-1920, sendo palco do lendário incidente fatal de que foi vítima a jovem violinista Ária Ramos, de 18 anos, num baile carnavalesco, na madrugada de 17 de fevereiro de 1915. Despido, há mais de seis décadas, de todos os seus traços de elegância, o icônico edifício ainda resiste, impávido colosso, à boçalidade dos homens, e está a clamar, há tempos, por uma merecida restauração que lhe restitua a dignidade outrora perdida e tão estupidamente vilipendiada.
A riqueza da estatuária de origem portuense não se fazia notar somente nas construções voltadas para o comércio. Também nas residências, especialmente naquelas de aspecto solarengo, a aposição de tais artefatos no alto da fachada, em combinação com outros elementos decorativos, em muito contribuía para que os passantes, de antemão, decodificassem aquela morada como lar de uma família aristocrática, detentora de bons costumes e de alto status social e financeiro. Vivendas assim proliferavam, por exemplo, nos elegantes bairros cariocas de Flamengo, Botafogo e Laranjeiras (cenários de muitos dos romances de Machado de Assis); nas paulistanas alamedas dos Campos Elíseos; nas chácaras urbanas de Recife; no bairro da Graça e ao longo do Corredor da Vitória, endereços da nova elite soteropolitana; e nas sombreadas travessas residenciais, pejadas de mangueiras, de Belém do Pará.
Manaus, para quem não sabe, também possuía o seu “eixo elegante” nos tempos do látex, representado pela Avenida Joaquim Nabuco (antiga Estrada de Nazareth; e, entre 1900-1910, Avenida Silvério Nery). Ela mesma, a extensa e tradicional via que corta a região central de ponta a ponta, no sentido sul-norte, e que atualmente, rebaixada à degradante condição de “zona vermelha”, valhacouto da mais extrema miséria humana em seus seis quarteirões iniciais, só nos envergonha e nos entristece. Evidentemente que não era assim no passado, nem de longe. Muito pelo contrário. Endereço de algumas das mais nobres e belas residências de Manaus, desde o final do período provincial, a atual Joaquim Nabuco sempre foi uma das ruas preferidas pela alta burguesia da cidade, que nela edificou um conjunto de chácaras urbanas, sobrados, palacetes e bungalows dos mais diversos estilos, ao longo de mais de meio século.
Dentro do específico partido arquitetônico abordado neste artigo - os casarões “luso-tropicais”, revestidos de azulejos e dotados de estátuas em sua frontaria -, duas edificações sobressaíram, sendo das primeiras grandes vivendas erguidas naquela avenida residencial, na última década do século XIX. Uma delas foi reduzida, há tempos, a um pálido retrato sépia, colado em álbuns de família. Era a morada pertencente ao armador (construtor naval) Francisco Mentor de Vasconcellos, situada nos altos da Joaquim Nabuco, entre as ruas Huáscar de Figueiredo e Vinte e Quatro de Maio, lado esquerdo de quem sobe a avenida. Muito bonita, se destacava igualmente pela sua topografia, tendo sido construída em terreno elevado em relação ao nível da rua, protegido por um sólido muro de arrimo e acessível por uma escadaria de lance duplo, salvo engano. No patamar superior, a casa se distanciava alguns metros do portão de entrada, o que só lhe conferia maior imponência e beleza, acentuada pelos belos azulejos amarelos de sua fachada, e pelas cinco louçãs figuras alegóricas, representando os cinco continentes, que arrematavam seu frontispício. Mansão de aspecto colonial, que foi inclusive distinguida pelo eminente sociólogo paraense Leandro Tocantins, em sua obra magna, O Rio Comanda a Vida – Uma Interpretação da Amazônia (1940), com a seguinte descrição, contida no capítulo “Aspectos da arquitetura tradicional de Manaus”:
“Mas o que empresta um encanto particular às vias públicas de Manaus é a presença de inúmeros palacetes residenciais dos antigos lordes do comércio: chefes de casas aviadoras, seringalistas, donos de empresas de navegação, exportadores de borracha, corretores. A força-motivo de todos os negócios era única, imperialmente: a borracha. (...) Prosseguindo pela Avenida Joaquim Nabuco, pode-se apreciar a sede da Legião Brasileira de Assistência, um gracioso chalé, estilo de fazendinha Império, com porão e um andar, lance duplo de escadas e varandas laterais, rodeado por um grande quintal. Ao lado, uma bonita casa portuguesa, também do início do século, com azulejos de fachada, platibandas e balaústres coríntios encimados por estatuetas de inspiração grega, em cerâmica da fábrica de Santo Antônio do Porto.”
Infelizmente, não cheguei jamais a por os olhos sobre tal relíquia predial, mas sempre ouvi falar dela, através de minha mãe. Mais especificamente, sobre o indigno fim que teve a casa, subitamente desabada, por problemas estruturais, em certo dia de 1968, na sequência de alguns poucos “estalos”, à guisa de aviso prévio. Uma tragédia patrimonial, tanto no sentido econômico quanto do ponto de vista histórico, que “matou de susto” – quase matando literalmente - seus derradeiros moradores, que escaparam por um triz de serem soterrados: quatro senhoras idosas e solteiras (Esmeraldina, Flávia, Luziélia e Guiomar), irmãs do falecido Mentor de Vasconcellos; a sobrinha delas, minha prima Eleonora Péres (também Vasconcellos, pelo lado de sua mãe, Lasthenia), e os filhos pequenos desta última. Felizmente, meu primo Leopoldo (irmão caçula de Eleonora) teve a sensibilidade de guardar consigo uma das estatuetas decorativas da fachada, que, ‘Deo gratias’, escapou intacta do sinistro.
O mesmo triste destino do solar dos Vasconcellos ameaça se repetir - acaso a mão firme das autoridades não se faça sentir urgentemente - com relação ao seu “irmão gêmeo”, situado bem mais abaixo, no meio do quarteirão entre a Rua dos Andradas e a Quintino Bocaiúva. Abandonado, esquecido e recentemente vandalizado por uma súcia perversa, o casarão do velho e querido Grupo Escolar Nilo Peçanha – onde me alfabetizei e cursei todo o ensino primário, sob os cuidados, a doçura e paciência de minha primeira professora, dona Lya de Queiroz Monteiro – é hoje um triste retrato do que se transformou o Centro de Manaus, desprezado pelos cidadãos de bem e completamente tomado e saqueado por uma hoste de vagabundos advindos sabe Deus de onde. No caso do prédio do antigo Nilo Peçanha - também erguido no final do século XIX como residência do construtor (empreiteiro) José Cardoso Ramalho, pai do ex-governador Ramalho Júnior – o escândalo se faz ainda mais evidente, já que aquelas paredes guardam a honra de terem abrigado por vinte anos, entre 1914 e 1934 (antes do grupo escolar), a sede da nossa histórica e centenária Faculdade de Direito. A despeito disso, prevalece a inércia generalizada dos entes públicos quanto à sua recuperação e seu destino, num angustiante pacto de silêncio, do tipo “comeu abiu”. Nos últimos tempos, sempre que passo em frente à minha amada escola, ao percorrer de carro as antigas ruas centrais, o faço com um misto de nostalgia e de angústia. Esta mais do que aquela, porque nunca sei até quando terei o prazer de contemplar ao longe, como fiz tantas vezes em criança, a “legião branca” que secularmente embeleza e dignifica a frontaria do velho educandário da Joaquim Nabuco. Tais e quais invictas e resilientes vestais romanas, as seis graciosas matronas de louça têm resistido a toda sorte de agressões ao seu honorável lar, e teimam em não serem quedadas de suas peanhas, apesar dos pesares. Estão todas lá, felizmente, porém largadas ao seu ominoso infortúnio. Discretas, quietas, intimidadas, talvez rogando para serem esquecidas de fato, em todos os sentidos; perplexas diante de tanta irreverência e tanto desrespeito da sociedade atual pelos seus próprios valores (se é que ainda os mantém).
Este artigo não tem, evidentemente, a pretensão de elaborar um rol exaustivo de todas as edificações manauaras contempladas com tais adereços cerâmicos, até porque isso seria uma tarefa difícil, visto que algumas delas, especialmente aquelas localizadas nos arrabaldes da zona central, não foram jamais fotografadas por seus moradores, restando apenas como vagas lembranças de descendentes ainda vivos, ou da narrativa esparsa de algum cronista ou memorialista. Dito isso, “puxo” pela memória de tudo que já vi ou li a respeito na iconografia e na literatura local para elencar mais alguns imóveis, existentes ou desaparecidos, em cujos altos se impunham, no passado distante, outros grupos de belas estátuas do Porto: 1) a demolida chácara da família Miranda Leão, ao final da Rua Ramos Ferreira, no antigo bairro dos Tocos (atual Aparecida); e que depois abrigou o primeiro hospício de Manaus - cujas enormes figuras de louça adornavam toda a extensão do gradil que a separava da rua, e que, segundo o historiador Mário Ypiranga Monteiro, eram vítimas constantes de pedradas e tiros de estilingue, disparados pela molecada do bairro, em tolas disputas pueris; 2) a casa térrea de porão alto e quatro janelas da Rua Simon Bolívar, em frente à Praça da Saudade (quase ao lado do “Palacete Mourisco”), que serviu de segunda sede ao Ideal Clube, entre 1906-1912; 3) vizinho a esta última, o esguio casarão assobradado da Rua Ferreira Penna, lar, por muitas décadas, da tradicional família Baraúna, um pequeno gineceu habitado por muitas moças (Clio, Débora, Elci, Iclé e Vitória), filhas do proprietário, o fiscal aduaneiro (e depois empresário) José Baraúna; 4) também na Ferreira Penna, a casa baixa fronteira a dos Baraúna, hoje pintada de rosa salmon e cuidadosamente restaurada, sobre a qual – num gesto de consciência de quem a adquiriu - foram repostas três bonitas estátuas, similares às que ali existiam originalmente; 5) o par (ou seria um trio?) de casas geminadas encarapitadas na “calçada alta” da Rua Luiz Antony; 6) o prédio original (incendiado em 1913) da elegante casa de modas Au Bon Marché, na esquina da Avenida Sete de Setembro com a Rua Joaquim Sarmento; 7) a sede, no início do século XX, da agência seguradora A Equitativa, dois quarteirões acima, naquela mesma avenida, adjacente ao extinto Grande Hotel; 8) o antigo botequim A Phenix (canto da Marechal Deodoro com a Quintino Bocayuva), onde, anos depois, se instalaria a longeva Drogaria Rosas, da firma J. G. Araújo... E me perdoem se esqueço de alguma!
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A dilapidação que se abateu sobre o acervo de estatuária portuguesa que por décadas ornou a paisagem urbana da Manaus antiga não foi um fato isolado, nem tampouco produto dos tempos modernos. Ou, pelo menos, dos tempos modernos ‘stricto sensu’. Começou bem lá atrás, talvez antes mesmo do advento da Zona Franca, quando a geração dos chamados “novos ricos” dos anos 60/70 – imbuída de toda a incultura e boçalidade que invariavelmente são peculiares a pessoas de súbita ascensão financeira e social – começou a descaracterizar (ou simplesmente demolir) os “prédios velhos” por si herdados ou adquiridos no Centro, a fim de convertê-los em lojas, “modernizando” seus interiores e suas fachadas sob parâmetros mais condizentes com os novos tempos e as novas funções dos imóveis. Um mau exemplo nefando e repetitivo, que resultou num verdadeiro “barata voa” do patrimônio urbanístico manauara, em todos os sentidos. Era comum, na década de 1980, adentrarmos numa residência de classe média alta de amigos de nossos pais e avós – na Vila Municipal, no Vieiralves ou no Parque Dez – e nos depararmos com uma estátua de louça jogada entre os arbustos de um jardim, coberta de limo; ou um painel ou chafariz, compostos por meia dúzia de azulejos portugueses, remanescentes da demolição de uma casa antiga; ou ainda um lampadário de rua do tempo dos ingleses, e por aí vai... Vestígios de uma Manaus que “montava e se desmontava” ano após ano, tal e qual uma vulgar ‘drag queen’ de cabaré, enlouquecida e deslumbrada diante de seu público rotativo. E o mais bizarro – para mim, pelo menos, um jovem que, desde “os cueiros”, aprendi a dar valor à minha terra e ao que ela possui realmente de valor, em sua essência – era ouvir o dono ou dona da casa, com um “sorriso amarelo” e imbecil na cara, se ufanar de que havia pedido ou ganhado de presente tal estatueta ou azulejo do “compadre fulano de tal” que, do nada, decidira derrubar “aquela casa velha lá na rua X ou Y”. Ou, pior, que havia encomendado ou recebido tais “mimos” em troca da prestação de um favor ou de um serviço jurídico ou de negócios. E a história da cidade que se danasse. Era assim – egoísta, simplória e inconsciente – a lógica de uma boa parte dos membros da “elite” ascendente e emergente da nova metrópole amazônica. Não podiam nem por sonho aquilatar o tesouro que guardavam dentro de seus muros. Sim, porque atualmente, no sempre aquecido mercado de antiguidades do Rio de Janeiro ou de São Paulo, qualquer simples exemplar de uma daquelas singelas e centenárias estatuetas produzidas pelas fábricas de Santo Antônio do Porto ou de Devesas é disputada “a tapa” nos leilões, dada a sua raridade e o reconhecimento de sua excelência, não sendo elas vendidas por menos de R$ 10.000,00 (dez mil reais), o preço-base, podendo escalar daí para cima a depender do tamanho e da representação da figura alegórica, e, claro, do grau de conservação da peça.
O que restou para Manaus desse rico e outrora quantitativo acervo escultórico é quase nada. Numa contabilidade rápida, calculo que, tirante o fabuloso grupo que (ainda) encima a platibanda do velho Nilo Peçanha, remanescem em seus lugares originais, como heranças do Ciclo da Borracha, apenas o trio de figuras que orna o já mencionado Grande Hotel, à Avenida Sete de Setembro, esquina com a Rua Marechal Deodoro (que, por pouco, não sucumbiu junto com o próprio edifício no terrível incêndio de 2010); uma estátua da deusa Minerva “encastelada” sobre o frontão de uma casa simples no final da Avenida Epaminondas; e mais dois outros exemplares do gênero, vistos acima da fachada de uma velha chácara da Rua Ajuricaba, na Cachoeirinha. Doze vetustas peças, últimas remanescentes de um perverso e contumaz rapto perpetrado contra seus pares. Um rapto vil, tal como o das jovens sabinas, celebrizado nos anais da República romana, que, escorado em justificativas mesquinhas e indefensáveis, abduziu, violentou, e fez desaparecer de nossas vistas, para todo o sempre, as belas “damas” e os viris “mancebos” de louça dos telhados da Manaus de outrora.
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Artigo publicado em 27.10.2024.



Prédio da antiga Tabacaria Böer, na esquina da Avenida Eduardo Ribeiro com a Rua Henrique Martins, ao tempo em que abrigava, seus altos, a sede do Ideal Clube. Possuía sua rica platibanda inteiramente ornamentada com estatuária e outros adornos em cerâmica trazidos de Portugal, há muito desaparecidos.
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GILBERTO BRAGA, ARTUR XEXÉO E O RIO DE JANEIRO QUE AMBOS LOUVARAM – E LEVARAM CONSIGO
Por Ronald Péres

Recentemente, terminei a leitura, agradavelmente enlevado – tanto pela escrita, em forma de gostosa crônica jornalística; quanto pelo conteúdo em si – do livro “Gilberto Braga – O Balzac da Globo”, biografia escrita pelo jornalista Artur Xexéo (e concluída, após a morte deste, pelo também jornalista Maurício Stycer), lançada no início deste ano de 2024, e que aborda, como o próprio titulo e subtítulo entregam, a vida e a obra do grande dramaturgo Gilberto Braga (1946-2021), o mais perfeito tradutor visual dos costumes, das idiossincrasias, da ‘finesse’ e do ‘aplomb’ da alta sociedade carioca (e brasileira, por tabela), revelada em sua monumental obra telenovelística de mais de quatro décadas à frente do horário nobre na TV Globo. Um livro que me chamou a atenção de cara, apenas pela capa, pois, ao percorrer mentalmente, de relance, o rico “universo” do biografado, me pareceu deveras natural (e justo) que a trajetória desse ícone de nossa cultura popular tenha sido recontada para a posteridade por outra personalidade tão emblemática da Imprensa carioca, tão culta e tão ligada ao imaginário do Rio de Janeiro das décadas de 1950, 1960 e 1970: Artur Xexéo (1951- 2021). Assim como me pareceu tristemente irônico (e injusto) que ambos, Gilberto e Xexéo, tenham partido quase ao mesmo tempo, com poucos meses de diferença entre um e outro, sem verem o livro finalizado e dele colherem os merecidos louros. Mortes precoces, diga-se de passagem, que levaram consigo duas prolíficas “penas”, senhores absolutos em suas respectivas áreas de atuação profissional; e dois preciosos “baús” de memórias, depositários das particularidades de um tempo maravilhoso, no qual a “Cidade Maravilhosa” - na sua “ressaca” de transição, de glamurosa capital federal para mera “capital de província” (coisa que jamais será) - ainda ditava modas e modos a torto e a direito Brasil afora. Pois é justamente deles, ou, melhor dizendo, da inevitável interconexão havida entre ambos, propiciada pelo rico microcosmo no qual viveram e em torno do qual orbitaram essas duas personalidades geniais e singulares, que eu quero falar nessa crônica.
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Primeiramente, Gilberto Braga. Falemos do rico mundo de Gilberto, o agradável e confortável mundo burguês no qual nasceu e se formou esse bem ducado e ilustrado tijucano de classe média, e, depois, o aristocrático e esnobe mundo dos “grã-finos” cariocas, no qual Gilberto, por seus próprios méritos, penetrou e naturalmente se aclimatou. Mundos esses que lhe serviram de eterna inspiração, e os quais compartilhou generosamente com todos os brasileiros, em veiculações diárias que entravam em nossas casas à hora marcada (invariavelmente às oito da noite) para nos ofertar um cardápio de genuínas emoções: risos, lágrimas, suspense e deliciosas especulações... Quem, nos últimos cinquenta anos, não se postou por algumas horas diante da TV, para torcer pelas suas heroínas – vividas por Betty Faria, Regina Duarte, Sônia Braga, Vera Fischer, Renée de Vielmond, Lucélia Santos, Lídia Brondi, Glória Pires, Cláudia Abreu, e, claro, a musa-mor do autor, Malu Mader, com seu sorriso desconcertante e todo o seu charme e sensualidade natural, de uma graça “que vem e que passa”, típica das moças da Zona Sul do Rio Janeiro? Ou, por outro viés, visto pelo anverso da moeda, quem não aguardava com ansiedade pelas vilanias e mil e uma maquinações das inesquecíveis megeras vivificadas pela mente fértil e talentosa do escritor carioca? “Peças raras”, possuídas de loucura, maldade, soberba e falta de escrúpulos, mas inevitavelmente ‘racées’, charmosas, espirituosas e irresistíveis: Yolanda Pratini (Joanna Fomm), em “Dancin´Days” (1978); Lourdes Mesquita (Beatriz Segall) em “Água Viva” (1980); Chica Newman (Fernanda Montenegro), em “Brilhante” (81); Renata Dumont (Tereza Rachel), em “Louco Amor” (83); Lúcia Gouveia (Joanna, novamente), em “Corpo a Corpo” (84); Constância Eugênia (“O Dono do Mundo”, 91) e Idalina Menezes de Albuquerque (“Força de um Desejo”, 99) - ambas magistralmente encarnadas pelo “monstro sagrado” que é Nathalia Thimberg, uma atriz gigantesca, a quem o Brasil ainda deve as devidas honras e reverências – e, ‘last but not east’, a “dupla dinâmica” das artes da patifaria: Maria de Fátima Aciolly (Glória Pires) e Odete Roitmann (Beatriz Segall), coprotagonistas da magistral “Vale Tudo” (88). As duas biscas, coadjuvadas em suas armações por seus respectivos comparsas e escroques, de alto e de baixo coturno, o boçal “tubarão” empresarial Marco Aurélio Cantanhede (Reginaldo Faria) e o decadente gigolô César Ribeiro (Carlos Alberto Ricceli), compuseram a síntese mais que perfeita do que de pior, de mais ordinário, canalha e cínico um determinado extrato da sociedade brasileira – aqui compreendida em sentido vertical, sem distinção de classes - é capaz de revelar. “Vale Tudo”, aliás, como obra-prima da dramaturgia em qualquer nível, merece uma crônica à parte, de tão didática e emblemática que é, até hoje, como retrato vivo de um Brasil podre e nocivo que, tal como as onipresentes baratas e ratos, parece imune á detonação de uma bomba de nêutrons ou qualquer outra hecatombe do gênero. O noticiário político (e, por vezes, também policial) do dia-a-dia, teatro grotesco no qual a vida real suplanta a própria arte, não me deixa mentir.
Gilberto era assim. Um autor maiúsculo antenado com seu tempo e com sua realidade, talvez o maior teledramaturgo gestado pela outrora “maquina de sonhos” da Globo, em minha opinião (que me desculpem os cultores de Janete Clair, outra personalidade igualmente grandiosa em seu ‘métier’). Tal como George Cukor no cinema americano, e como seu colega “global” Manoel Carlos, Gilberto era um ‘ladies’ man’. Compreendia a fundo a psiquê das mulheres, ao ponto de privilegiar em seus textos, talvez até mesmo inconscientemente, as personagens e personalidades femininas, sempre envolvidas e movidas por eternas contradições, representações, inconstâncias, dúvidas e anseios. Tinha um gosto musical apuradíssimo e uma cultura cinematográfica ímpar, ambos elementos onipresentes em sua obra, por sua direta ingerência e exigência. Percebia igualmente – outro ponto de interseção com Manoel Carlos - a sua cidade, o seu território, a sua gente, o seu cotidiano. Em todas as obras de Gilberto, o Rio de Janeiro se revela por inteiro, com suas cores, seus contornos, seus eternos cartões-postais. Mas também com sua riquíssima “fauna humana”, que, de alto a baixo, dá o tom da Zona Sul carioca. Gilberto traduzia em seus textos, como ninguém mais, o mundo quase irreal no qual viviam as chiques ‘socialites’, as belas modelos do ‘café society’, os mulherengos ‘playboys’ “filhinhos de papai” e os arrogantes empresários “donos do mundo”; todos debruçados em uma vida hedonista de festas espetaculares, carrões, iates e apartamentos de luxo, e transitando no vaivém estelar dos eixos Búzios-Angra-Paraty, ou Petrópolis-Teresópolis-Friburgo. Mas também era sensível o bastante para falar da gente comum das ruas de sua cidade, aqueles que, desde o raiar da aurora, dão o tom da vida na capital fluminense, singularizando-a e colocando-a no rol das mais interessantes cidades do mundo: os surfistas, os vendedores ambulantes da areia, os vagabundos, malandros e “ratos de praia” de Copacabana, (sobre)vivendo de “bicos” e “facadas”; os taxistas rudes e mal-humorados, as alegres e desabusadas “meninas da calçada”, os feirantes ruidosos e metidos a espertalhões na hora da “xepa”, os porteiros mexeriqueiros e “apresentados”, as mal-amadas síndicas dos condomínios, os velhos e velhas ranzinzas vociferando nos guichês dos bancos e nos caixas dos supermercados por causa de dois tostões a menos, o cara “boa-praça” da banca de revistas, da quitanda e do açougue; a “perua” fresca e cheia de “não-me-toques”, a turma ‘fitness’ dos compulsivos por ginástica na orla, as babás e seus carrinhos, os “tarados” por cachorros deixando seu rastro (e seu fedor) pelas calçadas, o “caô” (treta, malandragem) do carioca, o sexo à flor da pele presente em todas as esquinas, do Leme ao Recreio, exposto nos corpos desnudos e na malemolência de tantos rapazes e moças perfeitamente cônscios e senhores de seu poder de sedução...
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É justamente aí nesse ponto que o universo “gilbertiano” se conecta, de forma quase automática, aos brilhantes e “caleidoscópicos” textos publicados na mídia impressa, durante anos a fio, por esse outro gênio da pena que foi Artur Xexéo. Como ressaltei no início, é de fato uma dolorosa coincidência que, quase que de uma tacada só, o Rio tenha se despedido de dois de seus maiores tradutores, dois de seus maiores porta-estandartes, um no campo dramatúrgico, outro no campo jornalístico. Gilberto era um dramaturgo-cronista, já sabemos. Xexéo, pela linha inversa, foi o cronista clássico, perfeito e irretocável, que, ao final da vida, se fez dramaturgo, literalmente, ao enveredar pela gostosa seara dos musicais de época, levados à cena teatral no melhor estilo Broadway, com grande produção. Como foi também uma perversa trama do destino o fato de que, em seu derradeiro trabalho, Xexéo estivesse se debruçando justamente a escrever a biografia de... Gilberto Braga! Xexéo, tal como o seu conterrâneo, contemporâneo e parceiro das hostes culturais, era um carioca nato e convicto, “de carteirinha”, um amante apaixonado e devotado pelo Rio de Janeiro. Da mesma forma que o tijucano Gilberto, o capacabanense Xexéo igualmente brindava a seus “sete leitores” – como ele, jocosamente, se referia ao seu público-alvo, fazendo charme na abertura de suas crônicas dominicais, publicadas primeiro no ‘Jornal do Brasil’, e depois em ´O Globo’ - com um passeio maravilhoso e onírico pelo Rio de sua infância e adolescência, nos anos 50/60. Através de sua narrativa, de seu ‘savoir faire’, de sua fina ironia e verve (estas destiladas nas palavras ácidas de “Dona Candoca”, seu alter-ego, criado para expor suas “verdades secretas”), de sua vasta cultura, e, principalmente, de sua prodigiosa memória, éramos todos convidados, nós seus leitores fiéis – e aí eu me incluo, desde os meus verdes 17/18 anos, graças à influência benéfica de meus pais, leitores contumazes de ambos os periódicos cariocas - a conhecer lugares e episódios do passado recente do Rio dos “anos dourados”, acerca das quais jamais suporíamos, mas que habitavam, de forma muito vívida e familiar, a mente iluminada do cronista: os piqueniques de fim de semana na pitoresca ilha de Paquetá, os programas de auditório da Rádio Nacional, o Circo Garcia, o palhaço Carequinha, o teatrinho Trol da TV Tupi, os pitorescos “reclames” televisivos de Grapette, Crush e outros enlatados, os bailes de carnaval do Teatro Municipal e os luxuosos desfiles de fantasia do Hotel Glória, os desfiles de moda na exclusiva Casa Canadá, as “certinhas do Lalau” (vedetes do chamado “teatro de revista”), os concursos de Miss no Maracanãzinho, os programas da TV Rio e da TV Excelsior, o ‘glamour’ dos cines Metro, Rian e Roxy, as concorridas sessões de “filmes-cabeça” do Cine Paissandu, as ‘boites’ do Leme e do Lido, os entreveros e “causos” políticos dos tempos de Carlos Lacerda e Adhemar de Barros, o eterno ‘footing’ do carioca na Avenida Atlântica, os lanches na Cirandinha e na Colombo, os jantares finos nos restaurantes Bife de Ouro, Le Bec Fin e La Fiorentina; as compras na Sloper e na Sears, os ‘shows’ de Bossa Nova no Beco das Garrafas, os festivais de música dos anos 60, as “dunas do barato” de Ipanema, as “corridas de submarino” (leia-se, as transas clandestinas dos casais, na então erma e distante Barra da Tijuca), o “desbunde” dos anos 70, com a eclosão do colorido “mundo gay” e do exercício pleno da sexualidade... Sem falar nas estórias saborosíssimas envolvendo o ‘who’s who’ das altas rodas da Cidade Maravilhosa, ‘habitués’ das piscinas, restaurantes e salões do Copacabana Palace, do Country e do Iate Clube, e da pulsante ‘night’ da cidade: Jorginho Guinle acompanhado de suas “mil estrelas de Hollywood”, as deslumbrantes Vera Barreto Leite, Odete Lara, Ilka Soares e Danuza Leão, os colunistas Maneco Müller, Ibrahim Sued e Zózimo Barroso do Amaral; os “colunáveis” Baby Pignatari e Odile Rubirosa, Carmen e Tony Mayrink Veiga, Elisinha e Walter Moreira Salles, et caterva...; a “turma etílica da boemia” (e da boa música): Antônio Maria, Tom Jobim e Vinicius de Moraes, Dolores Duran, Sylvia Telles e Maysa; a “turma bonita da boa vida” (e às vezes “da viração”): Arduíno Colassanti, Leila Diniz, Roniquito de Chevalier, Regina Léclery, Pedrinho Aguinaga, Djenane Machado... Ufa! Está de bom tamanho ou querem mais?
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A morte de Gilberto Braga, em paralelo à de Arthur Xexéo, inevitavelmente, melancolicamente, abriu um vácuo, uma lacuna imensa na cultura brasileira. Foram duas cortinas – duas belas e luxuosas alcatifas, de veludo vermelho ‘bordeaux’ drapeado e com franjas douradas - que caíram ao mesmo tempo sobre a espetacular cena social carioca, e sobre a cena brasileira de modo geral. Ambas as personalidades, duas “antenas parabólicas” fincadas à margem esquerda da Guanabara, portavam consigo memórias e percepções afetivas ímpares, estórias particulares e coletivas, grande parte da própria História paralela (com “H” maiúsculo) de seu (do nosso) tempo; depositários que eram desse rico tesouro cultural de lembranças, que, com estilo e, sobretudo, com muito talento, repartiam com seus seguidores e admiradores. A impressão que temos, ao comparar as duas vidas aqui abordadas, é que, com elas, o Rio de Janeiro da segunda metade do século XX se despediu também, ou, pelo menos, “aquele” Rio – airoso, charmoso, genuinamente brasileiro e único – que, de supetão, deu adeus a todos nós, arrebatado na bagagem espiritual e emocional de dois de seus maiores ‘causeurs’, Gilberto Braga e Arthur Xexéo, legítimos “meninos do Rio”, sem dragões tatuados no braço, mas com suas mentes abertas na vasta dimensão do espaço-tempo. Que voem perenemente, à maneira das diáfanas asas-deltas que, diuturnamente, se projetam da Pedra Bonita, à ilharga do monólito da Gávea: coloridos, livres, leves e soltos, pairando sobre sua cidade amada e nos inspirando de lá de cima, do “Céu da Vibração”, como cantou o grande Gilberto Gil.
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Crédito das imagens: 1) Capa do livro “Gilberto Braga – O Balzac da Globo” (Editora Intrínseca Ltda., RJ, 2024); 2) Cena cotidiana capturada na Avenida Atlântica, no Rio de Janeiro (década de 1950). Disponíveis na Rede Mundial de Computadores.
Artigo publicado em 13.10.2024.

SÉRIE “HISTÓRIA”

MAD MARIA – O LIVRO, A MINISSÉRIE E A DELIRANTE “FERROVIA DO DIABO” QUE O BRASIL ESQUECEU
Por Ronald Péres
Recentemente, no último dia 12 de agosto, Manaus, o Amazonas e o Brasil se despediram de um de seus grandes pensadores e um dos maiores expoentes literários do país revelados nos últimos cinquenta anos: Márcio Souza (1946-1924).
Por coincidência, poucos meses antes do passamento do grande autor, “paguei uma dívida” antiga que tinha comigo mesmo, enquanto leitor contumaz, enquanto pesquisador diletante da História, enquanto amazonense, enquanto brasileiro. Refiro-me ao estupendo romance Mad Maria, uma verdadeira obra-prima, lançado em 1980 pelo nosso conterrâneo escritor, àquela altura, já afamado nacionalmente, depois do sucesso alcançado por sua estreia na ficção literária, com Galvez – o Imperador do Acre, de 1976. Em comum às duas obras tem-se, como pano de fundo, a talentosa abordagem pelo autor de dois episódios infelizmente mal explorados da História do Brasil, ambos sendo parte do chamado “Ciclo da Borracha” na Amazônia (1870-1914), conectados e sucedâneos entre si, e ambos igualmente fascinantes, do ponto de vista em retrospectiva do olhar contemporâneo.
Em Galvez entrevê-se, em meio à narrativa em tom farsesco, a disputa internacional, entre Bolívia e Brasil, no final do século XIX, pela posse do território do Acre e sua rica reserva de seringais nativos, vencida por este último após uma guerra civil entre cidadãos dos dois países, que redundou em pacto firmado com a assinatura do Tratado de Petrópolis, em 1903. Já em Mad Maria, de forma bem mais ampla, colorida e cheia de nuances, é retratada a construção, como conseqüência do citado acordo e sob encargo do governo brasileiro, da célebre Ferrovia Madeira-Mamoré (cuja locomotiva era apelidada de “Maria Louca”, em inglês), paralela às turbulentas e intransponíveis cachoeiras do curso superior do Rio Madeira, a fim de permitir o escoamento da borracha produzida pelo árduo trabalho dos seringueiros naquela região remota, desde os confins das selvas bolivianas até a vila de Guajará-Mirim (no atual Estado do Rondônia), e daí até os portos de Manaus e Belém, de onde o precioso insumo - à época, a segunda commodity da pauta de exportações brasileiras, depois do café - era embarcado para a Europa e a América do Norte.
Por trás dos dois eventos correlatos havia, obviamente, a manipulação explícita de fortes interesses do capital estrangeiro nas divisas geradas pelo látex amazônico. Ambições estas representadas, no caso, pelo grupo empresarial (o “sindicato”, ou holding, como se diz atualmente) capitaneado pelo poderoso empresário norte-americano Percival Farquhar (1865-1953), um magnata de alto coturno e uma verdadeira “águia” nos negócios e no tráfico de influência das altas esferas da Política, e, como tal, detentor de um rol de concessões públicas espalhadas por todo o Brasil, sob a forma de portos, ferrovias, madeireiras, mineradoras e outros investimentos privados “menores”, no ramo da hotelaria de luxo. Não é difícil adivinhar nesse sentido, quem era o astuto nome forte que – já sendo proprietário, não por acaso, de vastos latifúndios gomíferos no entorno do traçado da futura ferrovia - constituiu a Madeira Mamoré Railway Company, empresa vencedora da “licitação” para a empreitada da prometida estrada de ferro nos ermos do setentrião brasileiro...
Já na leitura dos primeiros capítulos do romance, minha empolgação foi tanta – seja pela envolvente e ilustrativa narrativa do autor; seja pelo próprio leitmotiv histórico em si, tão caro a nós, amazônidas – que me lembrei, inevitavelmente, da minissérie homônima baseada na estória, que fora produzida pela TV Globo e lançada em 2005, com grande divulgação na mídia nacional; produto esse que, à época, me “passou batido” (como a tantos telespectadores, talvez), em razão dos erráticos e imprevisíveis horários em que era veiculada pela emissora, fator que certamente deve ter lhe prejudicado em muito a audiência. Por isso mesmo, fiquei com vontade de revê-la como se deve, de forma atenta e sequencial. Mais: quis fazê-lo em paralelo à leitura do livro (experiência que nunca havia tido até então), o que se revelou um grande acerto, pois, além do duplo prazer a mim proporcionado, serviu de mútuo aval da grandiosidade de ambos os produtos, tanto o original literário quanto o audiovisual, dele derivado, e que nada lhe fica a dever em qualidade.
A trama novelística se passa no ano de 1911, quatro anos após o início dos trabalhos de construção da ferrovia, levada a cabo pela companhia norte-americana incorporada por Farquhar. E em dois cenários, aparentemente em tudo distintos um do outro. No primeiro deles, a vastidão e a solidão da selva amazônica - mais especificamente a chamada “Frente do Abunã”, trecho do trajeto férreo estacionado na passagem do rio de mesmo nome (um dos afluentes do Madeira) – temos um grupo de trabalho multiétnico composto por alemães, barbadianos, chineses e outras nacionalidades que, tal e qual numa bíblica “Babel” (no sentido lingüístico da diversidade; e no sentido alegórico, de confusão), não se entendem e se odeiam mutuamente, movidos pelo ‘stress’ de um labor incessante, extenuante e insalubre, que ceifa vidas a cada dia e parece não avançar na indômita e assustadora floresta; por seus próprios preconceitos raciais e por fúteis e irracionais disputas cotidianas. Todos liderados por um rude, debochado, fanfarrão e pragmático capataz inglês, Mr. Collier (vivido com um excesso de histrionismo por Juca de Oliveira na minissérie global), que, agindo com “mão de ferro”, não hesita um segundo em aplicar as mais duras e desumanas penas aos seus subordinados que ousam infringir as “regras” de trabalho por ele impostas, tornando ainda mais insuportável a dura realidade do dia-a-dia, que se arrasta no silêncio opressor da mata. E haja dureza: doenças (tuberculose, pneumonia, epidemias de malária e outras sezões infecto-contagiosas), ataques de feras e de índios, acidentes de trabalho, furtos, brigas, motins, assassinatos. Nada muito diferente do submundo que grassa atualmente dentro de um garimpo na Amazônia, por exemplo.
Em recorte narrativo diverso, a milhares de quilômetros dali, temos o cenário do elegante Rio de Janeiro do início do século XX, então capital federal e vitrine da modernidade da ainda jovem República brasileira, reluzindo de novo com sua bela Avenida Central, seus cafés e jardins à francesa e os ares parisienses trazidos pelas grandes reformas urbanísticas implantadas poucos anos antes pelo operoso prefeito Pereira Passos. O centro das grandes cartadas, tramoias, especulações e decisões políticas. O palco onde circulam dois dos grandes protagonistas (ou, melhor dizendo, antagonistas) da estória; ambos vaidosos, prepotentes e rivais no exercício, e, principalmente, na demonstração de poder. De um lado, o baiano J. J. Seabra, ministro da Viação e Obras Públicas, que, mal disfarçando uma certa hipocrisia por trás de uma aparência austera e impoluta, à semelhança de uma vestal romana, se arvora de feroz crítico e de escudo contra a ingerência estrangeira nos assuntos e na economia do país, mote de que se vale a fim de capitalizar dividendos para os projetos políticos em seu curral eleitoral. No campo oposto, como não é difícil supor, aparece o próprio Percival Farquahar em pessoa, munido de toda a arrogância e a boçalidade tipicamente advindas do dinheiro farto e fácil que jorra de suas algibeiras, e das quais lança mão, sem pruridos nem pudores, na tentativa (quase sempre bem-sucedida) de cooptar – leia-se, corromper - os “colonizados” brasileiros na consecução de suas ambiciosas investidas negociais. No meio de ambos, o político brasileiro e o milionário americano, uma notória antipatia mútua, metas opostas a serem atingidas num curto prazo, uma bela e jovem amante em comum e uma ferrovia na encruzilhada de seus caminhos, a Madeira-Mamoré, “pedra no sapato” no ardiloso xadrez político do primeiro, e “pedra angular” na delirante escalada capitalista do segundo. Na tela pequena, Antônio Fagundes e Tony Ramos, investidos dos respectivos papéis de Seabra e Farquhar, dão um show de interpretação, especialmente Tony, que, achando o tom certo da personagem histórica recriada com ares de vilão por Márcio Souza, faz do mogul americano um abjeto “porco chauvinista”, um verdadeiro poço de canalhice, cinismo, corrupção, cupidez, lascívia e misoginia.
Corte, mais uma vez, para o cenário amazônico, para a apresentação dos três “heróis” da trama, todos eles vítimas inocentes da malsinada Mad Maria, que, a cada trajeto vencido na jungle, parecia levar com ela vidas e sonhos desfeitos. O primeiro deles, Dr. Richard Finnegan (Fábio Assunção, na telessérie), um médico americano idealista, seduzido pelas “lorotas” contadas por seu veterano colega, Dr. Lovelace, a respeito de uma promissora perspectiva de trabalho aberta em plena selva brasileira, sob as melhores e mais favoráveis condições técnicas; mas que, uma vez lá estando, depara-se, isso sim, com um verdadeiro campo de concentração (e eventualmente de extermínio) montado diante de seus desiludidos olhos. A segunda, Consuelo (vivida pela lindíssima Ana Paula Arósio), uma jovem boliviana recém-casada que, após perder o marido num naufrágio durante uma travessia de vapor pelas corredeiras do Madeira, vaga desesperada pela mata, até que, semimorta, é resgatada pelos trabalhadores da ferrovia, que a levam para o acampamento e a entregam aos cuidados do virtuoso Dr. Finnegan, que, como se imagina, por ela logo se apaixona perdidamente, como em todo bom romance. E, finalmente, temos a figura do patético e débil “Joe”, um rapaz nativo da nação indígena Caripuna (encarnado na tela pelo ator amazonense Fidélis Baniwa), que, perdido e vagando a esmo pela trilha aberta em torno da estrada, depois de ter tido sua tribo dizimada pelas chacinas e pelas doenças trazidas pelos “civilizados”, é pego furtando pequenos “badulaques” dos alojamentos dos brancos. E, suprema tragédia dentro da tragédia, é “julgado” sumariamente por uma turba enfurecida, e “sentenciado” a ter suas mãos decepadas (!!!), sendo salvo, igualmente, pela pronta intervenção do bondoso Dr. Finnegan, amparado pelos tiros da Winchester do capataz Collins prontamente disparados à guisa de alerta aos “juízes”.
Durante a primeira parte da estória, o livro de Márcio Souza – seja valendo-se de pinceladas de aventura de faroeste (no contexto amazônico) ou de um drama de costumes à la Eça de Queiroz (no citadino ambiente carioca) – prima pelo desenho do riquíssimo tableau histórico que envolveu a construção da Madeira-Mamoré, bem como de seus igualmente interessantes e representativos personagens, reais ou fictícios. Duas das passagens mais emblemáticas se dão, não por acaso, justamente nas cenas que integram o primeiro capítulo da minissérie. Numa delas, o apito da chaminé da locomotiva, a Mad Maria, rasga o silêncio da mata em meio à trilha já aberta pela horda de trabalhadores que, macilentos, esfomeados e exauridos após mais um dia de trabalho, a seguem a pé, à semelhança de “espantalhos humanos” reduzidos à mais infame indignidade. Um quadro de horror e miséria que é suavizado logo em seguida pelo close da câmera sobre as mãos delicadas da personagem de Ana Paula Arósio, dedilhando ao piano, em diáfanas vestes típicas da ‘Belle Époque’, no convés do vapor que a levava para seu pretendido destino, a inebriante protofonia da ópera O Guarany, de Carlos Gomes. E, logo em seguida, a grande angular se abrindo, para revelar, com apoio orquestral e num esplêndido travelling toda a imensidão da Amazônia e a pequenez do homem diante dela, representada pelo barco a vapor que, a essa altura, é apenas um ponto pintado no verde da densa floresta, prestes a soçobrar mais adiante. Alguma semelhança com a grandiloqüência cênica e alegórica evocada no filme alemão Fitzcarraldo (1982), de Werner Herzog, não terá sido, talvez, neste caso, mera coincidência...
Todavia, a partir do momento em que a novela se encaminha para seu terço final, a narrativa adquire tons mais sombrios, melancólicos, quase de tragédia grega mesmo. Pois, tal e qual uma “maldição dos faraós” do velho Egito lançada sobre os violadores de tumbas reais, a “Ferrovia do Diabo”, como seria apelidada a igualmente faraônica Madeira-Mamoré, também parecia arrastar consigo vidas malsinadas pela miséria, pela moléstia, pelo fracasso, pela decepção, pela loucura, pela infelicidade... E pela morte, física e moral, daqueles que cruzaram seu caminho! Não vou aqui dar o destino de cada uma das personagens, para não estragar o prazer do leitor ou do telespectador das duas obras, e que nelas não ainda haja incorrido. Mas, sem dar spoilers, é possível antecipar (na verdade, rememorar) o irônico fato histórico que baliza e sintetiza, em sua amarga ironia, todo o melancólico desfecho delineado pelo autor como arremate de sua narrativa semificcional. Quando a Ferrovia Madeira-Mamoré enfim se inaugurou, em 7 de setembro de 1912, com a presença de Farquhar em pessoa, como anfitrião de uma efusiva efeméride que converteu a pequena Porto Velho – à época parte do Estado do Amazonas - numa quase filial de uma vila americana do ‘Mid-West’ adornada com bandeiras e flâmulas azuis e vermelhas, a guerra comercial pelos lucros da borracha amazônica já havia sido irremediavelmente perdida pelo Brasil, impotente, tanto do ponto de vista econômico quanto tecnológico, de competir diante dos prolíficos seringais cultivados pelo Império Britânico no Sudeste Asiático, desde o fim do século XIX, com as mudas de hévea nativa contrabandeadas da região do Tapajós pelo famoso aventureiro – leia-se, “biopirata” – Henry Wickham, um “soldado da fortuna” comissionado para tal fim pelos cientistas do Royal Botanical Garden de Sua Majestade, a Rainha Vitória. Diante de tal realidade insofismável, não havia mais borracha, pois, a ser transportada pela Mad Maria, sob a perspectiva da inviabilidade comercial frente aos vultosos custos operacionais de tais viagens. Farquhar, o ambicioso capitalista, o grande estrategista, o arrojado empresário, “dera com os burros n´água”, prostrado pela débâcle do látex tanto quanto qualquer exportador e aviador falido de Manaus e de Belém, ou quanto os desgraçados seringalistas e seringueiros que lamentavam sua desdita espalhados na vastidão da selva. ‘And then there were none’ (não sobrou nenhum), parafraseando o título do clássico romance policial de Agatha Christie!
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O epílogo desta triste história (com H) é bem conhecido de todos os amazônidas, e dos rondonienses em especial. Uma vez tendo perdido sua razão de existir, a “Ferrovia do Diabo” – que tanta desgraça causou na vida de tantos, em troca de praticamente nenhuma benesse - teve sua concessão antecipadamente desfeita pelo governo brasileiro alguns anos depois de inaugurada, por acordo celebrado com o próprio Farquhar, que, pragmaticamente, como bom americano, tratou de livrar-se da melhor forma dos imensos prejuízos que, hemorragicamente, a malograda estrada de ferro causara aos seus bolsos. Obsoleta, sem propósito, sem uso nem manutenção adequada, a Madeira-Mamoré acabou por ser, como tudo o mais na Amazônia que é deixado ao léu, “engolida” pela floresta, eternamente indômita e refratária à presença do homem “civilizado’, que até os dias de hoje se porta como um estúpido estranho e como um recalcitrante agressor ao seu peculiar e singular environment.
As lições de tal aventura – ou seria mais apropriado dizer desventura? – não foram absorvidas nem amadurecidas a contento, como mostrariam, nas décadas seguintes, outras pretensiosas e malfadadas incursões do gênero: a Fordlândia de Henry Ford, o Projeto Jari de Daniel Ludwig, a Transamazônica de Médici; e agora, ao que tudo indica, a gananciosa e um tanto açodada incursão exploratória da bacia petrolífera existente na foz do Rio Amazonas, que tanto enche os olhos da Petrobras e dos burocratas (e plutocratas) de Brasília. Todos eles “filhos” e “netos” da desvairada Mad Maria. ‘Quo usque tandem abutere, Catilina, patientia nostra?’ Cabe aqui apelar à clássica invectiva latina de Cícero, na qual, ao invés do nome do antagonista do famoso político romano, bem se poderia trocar para: “Até quando, imbecis, abusarão de nossa paciência?” E segue o desabalado “trem dos insensatos”... Sem foguista, sem maquinista e mais descarrilado que nunca! Melhor “embarcar” nesse outro comboio aqui, muito mais poético e “prazenteiro”, como diria Tom Jobim:
“Lá vai o trem com o menino/Lá vai a vida a rodar/Lá vai ciranda e destino/Cidade e noite a girar/Lá vai o trem sem destino/Pro dia novo encontrar/Correndo vai pela terra/Vai pela serra, vai pelo mar/Cantando pela serra, o luar/Correndo entre as estrelas, a voar/No ar/No ar”
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Crédito das Imagens: Rede Mundial de Computadores.
Artigo publicado em 22.09.2024.
A locomotiva da Madeira-Mamoré, conduzindo autoridades por um certo trecho da floresta amazônica, por ocasião da inauguração da ferrovia, em 1912.

RIBEIRO JÚNIOR E A REVOLUÇÃO TENENTISTA DE 1924 EM MANAUS – O CENTENÁRIO DE UMA GLORIOSA CAUSA PERDIDA
Por Ronald Péres

Imagens extraídas da Revista da Semana (RJ), montadas em forma de mosaico, nas quais são retratados figuras e episódios ligados à “Revolução do Amazonas” de julho-agosto de 1924. Nos três medalhões superiores vemos o General João de Deus Menna Barreto (à esquerda), comandante das tropas legalistas federais que depuseram os revoltosos; o Tenente Ribeiro Júnior (ao centro), líder da revolução; e o Coronel Raymundo Barbosa (à direita), substituto provisório de Ribeiro até a chegada do futuro interventor, Alfredo Sá. Na parte inferior, vemos as tropas federais em formação junto à escadaria do Palácio Rio Negro; e a multidão reunida na Avenida Sete de Setembro, saudando o discurso de Ribeiro Júnior proferido ao povo da sacada do palácio.
PARTE IV – A EXPANSÃO DA REVOLTA AO PARÁ E A REAÇÃO DO GOVERNO FEDERAL. O FIM DA REVOLUÇÃO, A QUEDA E A REDENÇÃO DO “REDENTOR”.
Uma vez alcançados os objetivos primordiais da revolução, mediante o controle do governo estadual e o apoio da população civil da capital, Ribeiro Júnior e seus jovens e idealistas companheiros de farda tomaram a decisão, já na semana subsequente ao levante, de expandir a luta para além das fronteiras amazonenses. E assim o fizeram. Ou, pelo menos, tentaram. A ideia era, em conjugação sinérgica com o iminente levante das tropas do 26º BC de Belém, deslocar uma força expedicionária ao vizinho Estado do Pará, descendo o Rio Amazonas, até a pequena cidade de Óbidos – uma localidade estratégica do ponto de vista militar, por estar situada defronte ao ponto mais estreito do grande caudal – e tomar posse do fortim no qual se aquartelava a guarnição federal ali baseada. Com isso, visavam os revoltosos do Amazonas, além de prestar auxílio logístico à sublevação de seus homólogos paraenses, garantir de forma mais segura a linha divisória entre os dois estados nortistas contra um previsível ataque de tropas legalistas enviadas pelo governo federal, que, cedo ou tarde, terminaria por acontecer.
Assim é que, passando da intenção à ação, zarpou do Roadway no dia 28 de julho de 1924 o apresado vapor Bahia, levando a bordo um batalhão de tropas com esta finalidade, comandadas pelo Capitão Dubois e pelos tenentes Lemos da Cunha e Barata. Um embarque festivo, acompanhado por cerca de dez mil pessoas postadas no cais flutuante, e saudado por música marcial e por discursos inflamados proferidos pelos tenentes Holanda e Villaronga Fontenelle, arrematados ao final pela fala do líder Ribeiro Júnior, concitando o esforço dos expedicionários em prol da causa maior: a expansão da revolução por todo o território paraense e, se possível, mais além, pelos estados do Nordeste. Um sonho deveras ambicioso, pois o que talvez não soubessem àquela altura era que o levante vestibular de São Paulo, iniciado em 5 de julho, e que serviu de estímulo à eclosão da rebelião nortista, já dava sinais de iminente colapso diante da contraofensiva engendrada do governo federal. E, mais, que o motim da guarnição de Belém fora sufocado ainda em seu nascedouro, a 26 de julho, pela forte reação da Polícia Militar local, que terminou por render os rebeldes.
A incursão ao Pará, todavia, foi bem-sucedida, tendo sido a fortaleza de Óbidos tomada em 2 de agosto, com o auxílio dos vasos de guerra Ajuricaba e Missões, integrantes da Flotilha do Amazonas. Uma ação rápida, facilitada pela adesão das tropas que guarneciam o forte, lideradas pelo Tenente Saint-Clair Paes Leme; pela consequente rendição do comandante do fortim, Capitão Bastos Nunes; e pela evacuação da cidade por boa parte da população, que, tendo sido previamente cientificada pelas autoridades do iminente confronto, evadiu-se para o interior. A captura daquele importante bastião propiciou que as tropas sublevadas de terra e mar, ali reunidas, se assenhorassem de outras vilas do Baixo Amazonas (Alenquer, Monte Alegre, Prainha, Almeirim) e chegassem até a importante cidade de Santarém, na foz do Rio Tapajós, onde também ficaram baseadas, à espera de reforços. É desta última localidade que o paraense Tenente Barata, em meados de agosto, telegrafa ao companheiro Ribeiro Júnior a fim de lhe prestar contas do êxito alcançado na missão levada a cabo em sua terra natal. E conclui sua missiva de forma dramática e ufanista, afirmando que “(...) em Óbidos será assegurada a liberdade da Amazônia ou será atestado pelos seus escombros o quanto se defendeu aquela liberdade conclamada há muitos lustros.”
*****
A resposta do governo federal à revolta tenentista da Amazônia, como era de se supor, não tardaria a se fazer realidade. Despido, na prática, de sua investidura governamental, César do Rego Monteiro – que não mais retornara a Manaus desde a deflagração do levante – valeu-se do mandato parlamentar conferido ao seu concunhado, Aristides Rocha, a fim de que este, da tribuna do Senado Federal, clamasse em altos brados pelo retorno do Amazonas ao status quo ante e pela punição dos militares revoltosos que agiam à margem do “império da Lei”. Uma voz que, evidentemente, não era isolada, posto que a expansão do movimento tenentista em nível nacional e o virtual retorno dos militares ao poder – tal como ocorrera nos “verdes anos” da República – não interessava ao stablishment sociopolítico-administrativo que orbitava em torno da elite de oligarcas civis que, baseada no eixo São Paulo-Minas Gerais, comandava o país.
Uma vez deliberada a necessidade de pronta e imediata reação àquela ruptura institucional, é constituído em 31 de julho o Destacamento do Norte, uma força expedicionária conjugada entre Exército e Marinha, armada com o propósito de sufocar a rebelião no Amazonas, prender os seus líderes e restaurar a ordem constitucional. Um contingente total de 1.500 militares, tendo à frente de seu comando o experiente General João de Deus Menna Barreto, oficial que havia se notabilizado por ocasião do levante de 1922, quando ajudou a debelar a revolta da Escola Militar. Por uma questão de praticidade e rapidez em atingir o seu alvo, optou-se por uma expedição marítima, organizada em forma de esquadra, com várias belonaves e embarcações de apoio compondo a sua formação, sendo as principais os destroieres Mato Grosso e Sergipe, a canhoneira Amapá, os cruzadores Barroso e Poconé, o navio-hospital Cuiabá e os transportes Macapá, Manáos, Belo Horizonte, Curitiba e Campos Salles, além de dois hidroaviões. Muito mais do que reprimir seus oponentes pela força das armas, o objetivo embutido sob tal aparato bélico era impressioná-los, e, claro, intimidar qualquer possibilidade de resistência. E assim se fez.
Em 18 de agosto de 1924, as tropas legalistas aportam em Belém. No dia seguinte, retomam o controle de Santarém. Em 21 de agosto, Menna Barreto telegrafa ao Capitão Dubois, e num ultimato, lhe concede o prazo de três dias para que a guarnição aquartelada no Forte de Óbidos, sob o comando do Tenente Barata, depusesse as armas. Desobedecida a ordem, segue-se um bombardeio àquela fortaleza por parte da Artilharia Naval, em 26 de agosto, e a sua consequente rendição. Após dominar a estratégica cidade paraense, as forças do Destacamento do Norte prosseguem em sua missão até o seu destino, Manaus.
Na capital amazonense, já reinava desde meados de agosto um certo clima de desânimo no seio do staff governamental de Ribeiro Júnior, suscitado pelas notícias desalentadoras que vinham do Pará, no tocante ao crescente êxito alcançado pela contraofensiva das tropas legalistas. Rumores começavam a circular entre o povo, esmorecendo o ânimo daqueles que acreditavam piamente na vitória da revolução. A fim de dissipar os boatos, uma mensagem encorajadora nesse sentido, escrita pelo governador militar, é veiculada no dia 27 de agosto, nas páginas do Jornal do Povo. Não é o bastante, todavia. O povo pressente o desfecho dos acontecimentos, os quais se desenrolavam justamente na direção contrária aos seus anseios, e põe-se em angustiado compasso de espera.
Ao entardecer do dia seguinte, 28 de agosto, a baía do Rio Negro, defronte ao Roadway, se viu tomada pela esquadra do Destacamento do Norte. O primeiro navio a ser avistado em terra, vindo do “Encontro das Águas”, foi o destroier Mato Grosso, seguido dos demais. No Poconé, que lançaria âncoras um pouco depois do resto da frota, estava o chefe da expedição, General Menna Barreto, que, prontamente, dá ciência formal a Ribeiro Júnior da presença das forças federais, e das possíveis consequências da desobediência às ordens emanadas do Palácio do Catete. O cenário de guerra estava armado.
Na memória coletiva de todos os manauaras, ainda estavam muito presentes os acontecimentos do fatídico dia 8 de outubro de 1910, quando a cidade amanheceu sob intenso bombardeio dos navios da Flotilha, suscitado por uma mesquinha tentativa de deposição do então governador do Estado, Antônio Bittencourt; um evento traumático para a população, que não desejava, de modo algum, reviver aquele nefasto episódio. Por ordens expressas repassadas previamente por Ribeiro Júnior às forças de terra e mar por ele comandadas, não houve tentativa de resistência ao desembarque das tropas legalistas, nem qualquer incidente de monta, deflagrados por parte dos correligionários militares e civis que genuinamente o apoiavam. Muito pelo contrário, o “Redentor”, fazendo jus à liderança que naturalmente conquistara perante os amazonenses, mostrou-se mais uma vez um homem sereno e estoico, e, num gesto de resignação e sabedoria, decide pela rendição incondicional, deliberando para que tudo transcorresse na mais perfeita ordem e respeito de parte a parte, na medida do possível. Não era desejo do líder da Comuna de Manaus perseverar no sonho revolucionário idealizado por si e por seus companheiros à custa do martírio de inocentes e de uma luta fratricida e sem perspectiva de vitória, dada a enorme desproporção das forças envolvidas.Na memória coletiva de todos os manauaras, ainda estavam muito presentes os acontecimentos do fatídico dia 8 de outubro de 1910, quando a cidade amanheceu sob intenso bombardeio dos navios da Flotilha, suscitado por uma mesquinha tentativa de deposição do então governador do Estado, Antônio Bittencourt; um evento traumático para a população, que não desejava, de modo algum, reviver aquele nefasto episódio. Por ordens expressas repassadas previamente por Ribeiro Júnior às forças de terra e mar por ele comandadas, não houve tentativa de resistência ao desembarque das tropas legalistas, nem qualquer incidente de monta, deflagrados por parte dos correligionários militares e civis que genuinamente o apoiavam. Muito pelo contrário, o “Redentor”, fazendo jus à liderança que naturalmente conquistara perante os amazonenses, mostrou-se mais uma vez um homem sereno e estoico, e, num gesto de resignação e sabedoria, decide pela rendição incondicional, deliberando para que tudo transcorresse na mais perfeita ordem e respeito de parte a parte, na medida do possível. Não era desejo do líder da Comuna de Manaus perseverar no sonho revolucionário idealizado por si e por seus companheiros à custa do martírio de inocentes e de uma luta fratricida e sem perspectiva de vitória, dada a enorme desproporção das forças envolvidas.Na memória coletiva de todos os manauaras, ainda estavam muito presentes os acontecimentos do fatídico dia 8 de outubro de 1910, quando a cidade amanheceu sob intenso bombardeio dos navios da Flotilha, suscitado por uma mesquinha tentativa de deposição do então governador do Estado, Antônio Bittencourt; um evento traumático para a população, que não desejava, de modo algum, reviver aquele nefasto episódio. Por ordens expressas repassadas previamente por Ribeiro Júnior às forças de terra e mar por ele comandadas, não houve tentativa de resistência ao desembarque das tropas legalistas, nem qualquer incidente de monta, deflagrados por parte dos correligionários militares e civis que genuinamente o apoiavam. Muito pelo contrário, o “Redentor”, fazendo jus à liderança que naturalmente conquistara perante os amazonenses, mostrou-se mais uma vez um homem sereno e estoico, e, num gesto de resignação e sabedoria, decide pela rendição incondicional, deliberando para que tudo transcorresse na mais perfeita ordem e respeito de parte a parte, na medida do possível. Não era desejo do líder da Comuna de Manaus perseverar no sonho revolucionário idealizado por si e por seus companheiros à custa do martírio de inocentes e de uma luta fratricida e sem perspectiva de vitória, dada a enorme desproporção das forças envolvidas.
Horas antes de sua prisão, uma multidão de dez mil pessoas comprimira-se diante do Palácio Rio Negro a fim de empenhar a sua solidariedade a Ribeiro Júnior e à causa revolucionária. Seguiram-se discursos de alguns de seus principais correligionários e admiradores (Crisantho Jobim, Rosa Ramalho, Antônio Mavignier de Castro, Hemetherio Cabrinha), e, por fim, do próprio Ribeiro Júnior, prestando contas de suas ações à frente do governo e concitando todos a se manterem firmes em seus ideais de dias melhores. A manifestação terminou com a oração emocionada do professor Coriolano Durand na qual, em certo trecho – de forma intencionalmente dramática – se referiu a Ribeiro como “doce Jesus de minha desventurada terra”, e concluiu sua fala conferindo-lhe, em nome do povo, o título de “Cidadão do Amazonas”. Mutatis mutandis, tirante o exagero da analogia relacionada à imagem religiosa do Cristo, pode-se dizer que a comunhão havida naquele momento entre o “pastor” (Ribeiro Júnior) e seu “rebanho” (o povo amazonense, que o venerava como seu “Salvador”) poderia soar como algo paralelo à “última ceia”, já que o “Calvário”, para aquele, ainda estava por vir.
Os lances desse dia histórico – e triste, para muitos manauaras – estão muito bem descritos, detalhe a detalhe, na reportagem do jornal União Portugueza, reproduzida semanas depois pelo periódico maranhense Folha do Povo (edição de 29.091924), e que aqui se transcreve parcialmente, in verbis:
“(...) Cerca das 17 horas, entrou em nosso porto o destroier ‘Mato Grosso’. Ao ser conhecido este fato, milhares de pessoas, de todas as classes sociais, correram às praias, enchendo completamente o litoral.
Após a amarração da belonave, essas milhares de pessoas se dirigiram a Palácio, vivando e aclamando o governador militar do Estado Sr. 1º Tenente Dr. Ribeiro Júnior, colocando-se a seu lado e dando-lhe seu apoio incondicional. Usaram da palavra vários oradores, entre eles os nossos confrades, Sr. Dr. Coriolano Durand e Antônio Mavignier de Castro.
Reclamado pela enorme massa popular, que se elevava a mais de dez mil pessoas, assumiu a tribuna popular o poeta Hemetherio Cabrinha, que começou dizendo: - “Povo, eu já fiz o meu testamento: deixo aos meus filhos um nome pobre de operário honrado, terminando por oferecer ao Governador Militar o seu corpo para servir de trincheira em sua defesa”. Em seguida, a massa popular, em um grito formidável, como se fora proferido por uma só boca, proclamou o temerário primeiro tenente Dr. Alfredo Augusto Ribeiro Júnior, Cidadão do Amazonas.
Visivelmente comovido, fala então o Sr. Governador do Estado, dizendo: “Em breves horas, daqui a pouco, terei de entregar os pulsos às algemas da legalidade. Antes, porém, quero apelar para todos, pedindo que, sob palavra de honra, se comprometam a receber em paz, desarmados, os emissários do Governo Central.”
E essas dez mil pessoas, depois de terem afirmado que iriam todas presas juntamente com ele, acabaram prometendo obedecer aos seus desejos. Palmas estrepitosas e ensurdecedoras, ‘vivas’ e aclamações irromperam delirantemente, atroando os ares de modo retumbante.
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Quando chegou a Palácio um ofício ordenando ao ínclito soldado da República que se recolhesse preso a bordo do ‘Mato Grosso’, o que se passou é indescritível. Essas milhares de pessoas, homens, jovens, senhoras e senhorinhas se opuseram a que Ribeiro Júnior se entregasse. E essa massa compacta de povo, chorando e cerrando os punhos, não queria que o insigne militar, esse oficial, nobre e cavalheiresco, que, movido pelo seu coração de homem de bem e pela sua alma pura e adamantina, que a todos havia arrancado ao sofrimento horrendo da fome e da miséria, levando a seus lares o conforto, o bem-estar e a garantia de seus direitos perante a lei, se fosse entregar prisioneiro. Entretanto Ribeiro Júnior, que é um estoico e um valente, conhecedor dos seus deveres, convencendo o povo de que devia obedecer, segue para bordo; todos o acompanharam até o cais de embarque, vivando-o e abraçando-o.
Ao ter o povo conhecimento de que Ribeiro Júnior havia seguido para Palácio, pelo igarapé, a fim de passar o governo ao Interventor, 21 e ½ horas mais ou menos, seguiu delirante para o aclamar mais uma vez em Palácio. Quase toda à noite, a massa formidável de povo percorreu as ruas de Manáos, dando vivas ao ex-governador militar, aos tenentes Barata, Azamor, Linhares, ao Exército e à Armada.”
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E continua o mesmo periódico, relatando a intensa comoção do povo amazonense que, tendo tomado ciência da prisão de Ribeiro Júnior e de seu confinamento no interior do paquete Bahia, afluiu em massa ao cais do Roadway no dia seguinte, 29 de agosto, para manifestar gratidão e reverência ao seu “Redentor”. Uma cena pungente, jamais vista antes na história de Manaus: uma verdadeira legião popular, estimada em cerca de vinte mil pessoas, aglomerada de forma espontânea e coesa a fim de lamentar, em lágrimas e sob uma devoção quase messiânica, a queda do jovem líder que, no curto período de pouco mais de um mês, capturara os seus corações, com sua postura de homem probo e a sabedoria, lisura e transparência com que exercera seu breve governo. A nota fala por si:
“(...) Às 9 e ½ horas de ontem, sexta-feira, ao saber-se que o ex-governador militar do Estado se achava preso a bordo do paquete ‘Bahia’, dirigiram-se para o ‘Roadway’ da ‘Manáos Harbour’ milhares e milhares de homens, senhoras e senhorinhas, reclamando a soltura de seu ídolo querido.
Profundamente comovido, o 1º tenente Dr. Ribeiro Júnior veio à porta da câmara que lhe serve de prisão e daí saldou e agradeceu a grandiosa manifestação de solidariedade do povo amazonense, que por três vezes o aclamou delirantemente. Não existe realmente, nesta terra, coração bem formado que não admire esse homem másculo, que, caindo, sobe mais, porque soube cair de pé!
Dificilmente o povo renunciará à liberdade sublime que Ribeiro Júnior lhes outorgou nestes trinta e tantos dias de seu governo honrado e justiceiro. Ninguém se iluda a tal respeito. A liberdade é a coisa mais linda e elevada que existe; e Ribeiro Júnior deixou um altar erigido em cada peito deste povo sofredor, que lhe será eternamente grato.
Muitas senhoras e senhorinhas enviaram para bordo ‘bouquets’ de flores, beijando-os antes e orvalhando-os com lágrimas do mais profundo reconhecimento. Dezenas de embarcações cercavam o paquete por todos os lados, tentando subir ao tombadilho, o que não foi permitido. E nós também fechamos estas ligeiras notas com lágrimas nos olhos e o coração enlutado.
(...)
Às 12 horas desse dia o ‘Roadway’ da ‘Manáos Harbour’ e todo o litoral se achavam repletos de povo. Ao bater o meio-dia, um homem, de cima dos armazéns, disse: “Povo, ajoelhai e rezai pelo nosso salvador!”. A cena que então passou é daquelas que fazem curvar a cabeça na mais profunda contrição, pois cerca de vinte mil pessoas – senhoras, senhorinhas, homens, rapazes e crianças – ajoelharam-se, ergueram as mãos para o céu e rezaram. Durante essa prece, que durou cinco minutos, não se ouvia nem sequer o zunido de um mosquito. O silêncio era absoluto, estático!
Nesse momento, em que as lágrimas de mães amazonenses e seus filhinhos estremecidos rolavam pelas faces abaixo, vindo misturar-se, nos lábios, com as preces ao Altíssimo Arquiteto do Universo, fervorosamente pronunciadas em ação de graças ao homem que as tinha arrancado da fome, da nudez, das enfermidades, e de todas as misérias, bem como os seus maridos e pais, apareceu à porta da câmara do ‘Bahia’, a figura simpática, insinuante e pálida do intemerato e criterioso 1° tenente Ribeiro Júnior.
Abrindo os braços potentes, fez um amplexo, como quem queria apertar ao seu peito, nobre e valoroso, essas vinte mil pessoas. Em seguida, levou a mão direita ao coração e depois ficou em continência ao povo, enquanto este esteve ajoelhado. Ao erguer-se, o povo rompeu em aplausos frenéticos e retumbantes a Ribeiro Júnior, ao Exército e à Armada.”
Restabelecido o controle do aparato estatal pelas forças legalistas, começam a circular na capital boatos em torno da possível volta da oligarquia Rego Monteiro ao poder, o que não era de modo algum desejável, quer pelas classes populares, quer por muitos membros da elite local igualmente vítimas dos desmandos do clã durante tantos anos de desordem administrativa e de perseguições políticas. Vindo da região do Rio Branco (atual Estado de Roraima) - onde se refugiara durante a revolução, asilado na fazenda do pecuarista Bento Brasil - o ex-governador interino, Turiano Meira, desembarca no Roadway escoltado pelas forças federais, sob intensa vaia dos populares ali presentes. Intimidado pela má recepção, Turiano se recusa a reassumir a cadeira vacante do Executivo, atitude igualmente tomada pelos presidentes da Assembleia Legislativa e do Tribunal de Justiça. Diante do impasse institucional, seguem-se sinais de franca azáfama e insatisfação, tanto nos gabinetes estaduais quanto no seio da população, que logo tomou novamente as ruas, clamando veementemente por uma intervenção do governo federal. O presidente da República, Arthur Bernardes, que almejava pacificar a insurreição o mais rápido possível, não faz ouvidos moucos aos apelos, e termina por ceder à voz do bom senso, decidindo afinal pela decretação do status de exceção. Quem nos conta a respeito de tais movimentações de bastidores é ainda o mesmo periódico União Portugueza, na reportagem transcrita pela Folha do Povo (MA), alusiva a fatos ocorridos nos primeiros dias de setembro de 1924:
“(...) Ao saber-se que o governo da União havia ordenado a reposição do governo Rego Monteiro; que o Sr. Dr. Ayres de Almeida, na qualidade de presidente da Assembleia Legislativa, apesar de convidado oficialmente, não aceitaria, e que o Sr. desembargador Sá Peixoto, presidente do Superior Tribunal de Justiça havia tido o mesmo gesto nobilitante, a população desta capital, alvoroçada, rugindo como um leão enraivecido, correu para a rua a protestar contra tal reposição.
Essa notícia horrível, correu tão rápida e mexeu com os nervos do povo amazonense, que, em menos de dez minutos mais de três mil pessoas se aglomeraram nos cantos das Avenidas Eduardo Ribeiro e Sete de Setembro, falando ao povo vários oradores, inclusive o Sr. Capitão do Exército, A. Dourado. A massa popular foi crescendo de momento a momento, e o comércio ia fechando suas portas, tornando, em pouco tempo, as suas amplas artérias quase intransitáveis. Em dado momento, um homem de cor, um preto, usando da palavra, disse: “– No tempo da escravatura nós tínhamos de pedir ao senhor a quem devíamos ser vendidos... e hoje, em plena República, em que se diz reinar ampla liberdade, não temos o direito de escolher quem nos governe...”. Uma retumbante salva de palmas cobriu as últimas palavras do arrojado orador.
Pouco depois circulou a notícia de que os Senhores Doutores Ayres de Almeida e Sá Peixoto telegrafaram ao Exmo. Sr. Presidente da República, pedindo a intervenção ampla para o Amazonas. E o povo, essa massa leônica e formidável, então descansou, dissolveu-se como por encanto, com a mesma rapidez com que se havia reunido!
Aplacados os ânimos, Menna Barreto, obedecendo a comandos superiores, designa como governador interino o Coronel Raymundo Barbosa, comandante da 8ª Região Militar (Norte-Nordeste), até que se consumasse a intervenção federal no Amazonas. É curioso ressaltar que, durante todo o tempo em que as tropas legalistas permaneceram em Manaus – um lapso de quase um mês – não houve, por parte da população civil, quaisquer atos de hostilidade dirigidos contra aquelas ou contra o General Menna Barreto, encarado pela maioria do povo não como um algoz, mas como um homem sério e responsável, que, honrando a farda que envergava, ali estava em estrito cumprimento de seu dever de militar. Este, por seu turno, se portou de modo igualmente digno, procurando tratar a todos os cidadãos que a ele se dirigiam com gentileza e urbanidade; e, numa atitude de tácito reconhecimento aos méritos da administração de Ribeiro Júnior, manteve quase todos os integrantes do secretariado deste último em seus postos, à exceção do superintendente da capital, Chagas de Oliveira, por este ter se recusado a restaurar a nomenclatura da Praça de São Sebastião, alterada, durante o governo revolucionário, para Praça Ribeiro Júnior. Finalmente, em 24 de setembro de 1924, a esquadra do Destacamento do Norte zarpa de Manaus, deixando a cidade e o estado aos cuidados do novo governador militar, até a chegada do interventor, o mineiro Alfredo Sá, o que ocorreria somente em dezembro daquele ano.
Aplacados os ânimos, Menna Barreto, obedecendo a comandos superiores, designa como governador interino o Coronel Raymundo Barbosa, comandante da 8ª Região Militar (Norte-Nordeste), até que se consumasse a intervenção federal no Amazonas. É curioso ressaltar que, durante todo o tempo em que as tropas legalistas permaneceram em Manaus – um lapso de quase um mês – não houve, por parte da população civil, quaisquer atos de hostilidade dirigidos contra aquelas ou contra o General Menna Barreto, encarado pela maioria do povo não como um algoz, mas como um homem sério e responsável, que, honrando a farda que envergava, ali estava em estrito cumprimento de seu dever de militar. Este, por seu turno, se portou de modo igualmente digno, procurando tratar a todos os cidadãos que a ele se dirigiam com gentileza e urbanidade; e, numa atitude de tácito reconhecimento aos méritos da administração de Ribeiro Júnior, manteve quase todos os integrantes do secretariado deste último em seus postos, à exceção do superintendente da capital, Chagas de Oliveira, por este ter se recusado a restaurar a nomenclatura da Praça de São Sebastião, alterada, durante o governo revolucionário, para Praça Ribeiro Júnior. Finalmente, em 24 de setembro de 1924, a esquadra do Destacamento do Norte zarpa de Manaus, deixando a cidade e o estado aos cuidados do novo governador militar, até a chegada do interventor, o mineiro Alfredo Sá, o que ocorreria somente em dezembro daquele ano.
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Artigo publicado em 18.08.2024.

O General Menna Barreto (sentado, com as mãos cruzadas, visto ao centro da fotografia) posando no Palácio Rio Negro, junto ao seu Estado-Maior, após a deposição de Ribeiro Júnior. FONTE: Acervo do historiador Abrahim Baze, veiculado através do Portal Amazônia (Rede Mundial de Computadores).
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Nesse ínterim, Ribeiro Júnior – que havia sido conduzido do Bahia para uma cela do quartel da Polícia Militar, a fim de evitar novas aglomerações à beira do cais – seguiria preso na capital amazonense, e continuou recebendo as mais diversas manifestações de apreço e carinho por parte do povo. Em meados de setembro, ainda sob tal condição, é transferido para o 26º BC de Belém, onde permanece encarcerado por mais de um ano, à espera de seu julgamento, assim como os demais revolucionários. O caso foi primeiramente julgado pelo Conselho de Justiça Militar da 8ª Região (circunscrição à qual o tenente estava vinculado), e depois, em grau de apelo da Promotoria, perante o Supremo Tribunal Militar. O acórdão da Corte Marcial, proferido em março de 1925, considerou o réu incurso nos crimes previstos no artigo 117 do Código Penal Militar, combinado com o artigo 43 do Código Penal vigente à época (sedição e subversão da ordem pública); e decidiu pela condenação do oficial rebelde a uma pena de grau médio, num total de 3 anos, 9 meses e 5 dias; sentença da qual Ribeiro cumpriria mais da metade, em regime fechado.
No interregno do cárcere belenense – período em que se distrai escrevendo crônicas para o jornal O Estado do Pará - Ribeiro teria duas grandes alegrias. A primeira foi quando recebeu com grata satisfação, das mãos de um amigo de Manaus, Salvador Carlos de Oliveira, um lindo álbum fotográfico, por este organizado, sob o título O Momento Histórico do Amazonas, contendo diversos flagrantes dos dias de glória vividos por ele e por seus companheiros rebeldes à frente do governo amazonense. E a segunda, infinitamente maior, foi rever Belisa e os filhos, depois de quase quatro anos separado dos seus entes queridos. A esposa, saudosa, para lá se transferira de Barra do Piraí, a fim de ficar mais próxima de seu amado. Da mesma forma, ela e os pequenos o acompanhariam de volta a Manaus, em fins de 1925, instalando-se a família numa confortável casa à Rua Dez de Julho, nº 37, estrategicamente situada atrás do 27º BC, onde Ribeiro ficaria detido por apenas dois meses.
Por uma estranha ironia do destino, o breve retorno de Ribeiro Júnior a Manaus, em outubro de 1925, ainda na condição de preso apenado, coincidiu com a tentativa de regresso de Mário do Rego Monteiro, o odiado ex-chefe de Polícia do governo por ele deposto. Num gesto de arrogância e cinismo, próprios de sua personalidade, Mário aporta na cidade no dia 7 de outubro, a bordo do vapor Baependy, investido do cargo de juiz de direito, por influência de seu pai, César. Porém, é impedido de desembarcar no Roadway por uma multidão estimada em dez mil pessoas, que ali se encontrava à sua espera, mantendo-se em vigília em veemente protesto contra sua posse no cargo e prorrompendo em vaias e impropérios contra sua pessoa. Mesmo decorrido mais de um ano do calor dos acontecimentos do ano anterior, a população ainda se mostrava inflamada e hostil pela memória dos desmandos praticados pelo clã Rego Monteiro no passado. Diante da acachapante e surpreendente reação cívica do povo de Manaus, o insensato Mário, aconselhado pelas autoridades locais, decide retornar ao Rio de Janeiro no mesmo navio em que embarcara, frustrado e humilhado.
Em dezembro de 1925, Ribeiro Júnior é mais uma vez transferido, desta vez para o presídio de segurança máxima da Ilha Grande, no litoral sul fluminense, unidade que concentrava os presos políticos mais importantes do país. De lá, após nove meses, é remetido para o Hospital Central do Exército, no Rio de Janeiro, onde cumpre pena até junho de 1927. Nesse meio-tempo, em setembro de 1926, Ribeiro Júnior recebe de Belisa (ainda residindo em Manaus) a notícia da chegada de mais uma filha do casal, a amazonense Yara, fruto de um momento íntimo de ambos durante o breve interlúdio manauara de sua prisão. A escolha do nome da menina, não por acaso batizada com o nome da Mãe d´Água da mitologia indígena, é mais uma prova cabal do extremo apreço e da ligação afetiva de Ribeiro com a terra pela qual se batera, e que jamais o esquecera, mesmo em seus dias de infortúnio.
Em fevereiro de 1927, teve início a redenção do “Redentor”, sendo Ribeiro posto em liberdade após o Supremo Tribunal Federal ter-lhe concedido o habeas corpus impetrado a seu favor por seus advogados. Tão logo circulou em Manaus a notícia de sua anistia, os membros da Legião Cívica da cidade, seus devotados seguidores desde os eventos de 1924, apressaram-se em lançar a sua candidatura ao Congresso Nacional, num grande comício em praça pública. Nesse contexto de euforia, seu retorno triunfal ao Amazonas é mais que esperado; e termina por acontecer, em grande estilo, alguns meses depois. Quem nos conta mais uma vez é sua filha Eneida Ribeiro, em suas já citadas Memórias:
“Em 4 de julho de 1927, Ribeiro Júnior, do Rio de Janeiro, retorna ao Amazonas. Ao descer do navio ‘Prudente de Morais’, no porto de Manaus, encontra uma verdadeira multidão. A saída do ‘Roadway’ é tumultuada. Bandeiras brancas e chapéus de palha são freneticamente acenados. Na Praça São Sebastião, a Legião Cívica promove grande manifestação. O doutor Francisco Pereira da Silva faz-lhe uma saudação em nome do povo amazonense, por quem lutara há três anos, devolvendo-lhe a justiça e a liberdade. Todos desejam acompanhar o antigo Redentor a caminho de sua residência. Também fardados, com o uniforme do Colégio Dom Bosco, estão ao seu lado os filhos Ivan e Túlio. Orgulhosos com o reconhecimento do povo ao ex-governador revolucionário. Alegres com a volta do pai ao convívio da família.”
A justiça, a verdadeira JUSTIÇA, para o homem Ribeiro Júnior tardara, mas chegara, afinal. E ele agora seguiria sua vida, reabilitado perante o Exército e a sociedade, e pronto para novas incursões – desta feita, no campo político - em defesa dos interesses de sua terra adotiva, pela qual inscrevera seu nome na História. Em novembro de 1930, já residindo no Rio de Janeiro ao lado da família, é promovido à patente de capitão. Um mês antes, observara de longe, como espectador, o desenrolar da revolução militar que acabaria por soterrar a obsoleta “República do Café com Leite” e conduziria o “caudilho” gaúcho Getúlio Vargas ao poder, num desdobramento natural do Movimento Tenentista iniciado naquele distante mês de julho de 1922, e do qual ele e seus valentes companheiros de farda (Barata, Azamor e outros) foram grandes protagonistas. Em 1933, entusiasmado com o que parecia ser, àquela altura, um aceno do governo Vargas à democracia, mediante o anúncio da formação de uma Assembleia Nacional Constituinte, Ribeiro retorna ao Amazonas e se candidata à cadeira de deputado constituinte, pela Aliança Trabalhista Liberal, no pleito extraordinário convocado em maio daquele ano, recebendo uma expressiva votação. Porém, pelas regras eleitorais então vigentes, alcança apenas a primeira suplência de sua legenda. Mesmo frustrado em sua primeira incursão nas urnas, é homem de espírito indômito, que não se dá por vencido facilmente. Menos de um ano e meio mais tarde, nas constitucionais eleições parlamentares de outubro de 1934, é enfim eleito deputado federal, ficando em segundo lugar (5.581 votos) entre os nomes sufragados para o quadriênio de 1935-1938. Seu mandato é caracterizado pela defesa de importantes causas em prol do Amazonas, como o incentivo ao assentamento de imigrantes japoneses em colônias agrícolas; e o embate travado contra a concessionária inglesa Amazon Telegraph Company na tentativa de aditivar o contrato com o governo em condições desvantajosas para o erário estadual.
No campo ideológico, como homem moderado e de viés liberal-democrata, combate ferozmente da tribuna do Parlamento as duas grandes vertentes político-ideológicas que dominam a cena mundial na década de 1930, ambas extremistas, totalitárias e aparentemente antagônicas entre si: o fascismo de extrema-direita (no Brasil chamado de integralismo) e o comunismo de extrema-esquerda. Para seu extremo desgosto, Ribeiro Júnior veria seu filho primogênito, Ivan - já adulto e seguindo carreira no Exército, assim como o pai – enfileirar-se às hostes desta última e ser preso e condenado como um dos partícipes da malfadada Intentona Comunista de 1935, liderada por Luís Carlos Prestes. Uma amargura que recebeu uma dose extra em 10 de novembro de 1937, quando o Presidente Getúlio Vargas, dando explícita vazão à sua mal disfarçada veia ditatorial, decreta o por si denominado Estado Novo, impondo uma nova Constituição que, na prática, chancela o regime de exceção no país. As liberdades civis são restringidas e vigiadas, a censura é imposta aos meios de comunicação, e, last but not least, o Congresso Nacional tem suas portas cerradas. Desiludido com a brusca interrupção de sua vida pública e com os sombrios rumos do Brasil, Ribeiro, desde 1935 alçado à patente de major, tenta prosseguir sua carreira militar, sem o ânimo de outrora, contudo. Uma asma crônica, que o perseguia desde a juventude, evoluíra com os passar dos anos para uma aguda insuficiência cardíaca, que acabou por abreviar precocemente seus dias, aos 51 anos, em 29 de junho de 1938.
EPÍLOGO
Os anos se passariam. O Amazonas e Manaus seguiriam, no seu marasmo econômico e na sua quietude provinciana, até o novo surto de progresso trazido pela instalação da Zona Franca, a partir de 1967. Porém, no coração dos manauaras que viveram aqueles gloriosos e frenéticos dias de 1924, a memória e o legado de Alfredo Augusto Ribeiro Júnior jamais seriam olvidados. Em 1955, por ocasião da passagem do 31º aniversário da Revolução, a Municipalidade inaugura, com a presença de Yara, a filha amazonense do líder, a Praça Ribeiro Júnior, construída sobre o leito da Avenida Floriano Peixoto, atrás do Quartel da Polícia Militar. Arrematada por um busto de gesso do “Redentor do Amazonas”, moldado pelo artista Murilo Branco Silva, foi um logradouro de vida brevíssima, igualmente desaparecido na voragem do crescimento da cidade, que o fez desaparecer menos de duas décadas depois, em nome das pragmáticas necessidades impostas pelo crescente tráfego urbano. Em 1974, no Jubileu de Ouro da Revolução, Yara, em artigo publicado no Jornal do Commercio de 23 de julho daquele ano, assim recordou-se daquela ocasião:
“(...)
Quero relembrar a alegria imensa, o enorme orgulho que experimentei, a 23 de julho de 1955, quando inaugurei a Praça Ribeiro Júnior e pisei o chão de minha terra ali mesmo, junto ao 27º BC, de onde saiu meu pai, a 23 de julho de 1924, para devolver ao povo do Amazonas o que lhe fora roubado num governo de tirania.
Ali, onde ecoava ainda o timbre possante de sua voz, na palavra fluente de Hemetherio Cabrinha. Ali, ao lado de Philadelpho de Moraes, seu melhor e mais fiel soldado. Ali, junto a Eldah Bitton e Eunice Serrano, representantes da mulher amazonense, que participou ativamente da Revolução de 1924.
Ali, naquele pedaço de terra onde nasci, para perpetuar a figura de Revolucionário, para agradecer, junto ao meu povo, o que meu pai fez pelo Amazonas. Ali, par saudar Ribeiro Júnior, como sei que foi e sempre será saudado pelo povo do Amazonas.
Ali, para saudar seus companheiros de luta, comandante Simas – o único que tive a satisfação de conhecer pessoalmente – Azamor, Lemos Cunha, Barata, Dubois e tantos outros que tomaram parte na Revolução de 1924.
Cinquenta anos são passados. Poucos daqueles que participaram da Revolução, que a assistiram, ainda estão vivos. Mas, em cada amazonense, há de restar a lembrança da palavra de um pai, de um irmão, de um parente, enfim, que o fez conhecer Ribeiro Júnior.
(...)
O tempo não destrói a História, nem seus ídolos e heróis. Ao contrário: os faz renascer; ressalta-os e transporta-os para os tempos atuais. Surpreendi-me, em 1955, ao chegar a Manaus para inaugurar a Praça Ribeiro Júnior, e me deparar com a enorme multidão que aguardava a filha de Ribeiro Júnior, no Aeroporto de Ponta Pelada. Guardo, com imenso carinho, recortes de jornais e fotografias desse meu povo todo, dos amigos de meu pai, saudando sua memória, fazendo-o eterno na gratidão dos amazonenses.”
Quem foi, afinal, Ribeiro Júnior? Um demagogo carreirista? Um herói acidental? Um esperto oportunista? Um ingênuo sonhador? Talvez nenhum desses exagerados rótulos lhe caibam de forma adequada, justamente porque são exagerados, e, portanto, tendentes à deformidade em seu perfeito juízo de valor. Podemos dizer, talvez, sem incorrermos num igualmente exagerado simplismo, que Ribeiro Júnior, sem apresentar qualquer dote especial em particular – na escrita, na oratória, nas artes da estratégia próprias de seu métier - foi um homem comum, munido de reais valores éticos (presentes também na formação moral de muitos dos homens de seu tempo) e de inegáveis virtudes individuais: carisma, humildade, probidade, sagacidade, serenidade, senso de dever e de oportunidade, e, acima de tudo, uma aguçada consciência política e uma saudável indignação cívica. Predicados esses que, conjugados em sua pessoa naquele momento histórico muito singular do qual foi protagonista, o tornou, como se costuma dizer no jargão em língua inglesa, ‘the right man in the right place’ – o homem certo no lugar certo (e na hora certa). E se o povo amazonense - durante o breve “sonho de uma noite de verão” que foi a Revolução de 1924 em Manaus - o encarou, em sua época, como o seu “Redentor”, o prócer de sua gloriosa “causa perdida”; e a História - escrita pelo pósteros, devidamente revista e analisada sob os mais diversos ângulos - não desmentiu tal epíteto, que assim seja, para todo o sempre. Evocando outro antiquíssimo jargão popular, este proveniente da Roma antiga: ‘vox populi, vox Dei’!
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FONTES DA PESQUISA: Hemeroteca Digital Brasileira/Biblioteca Nacional (jornais diversos), A Revolução de 1924 em Manaus (1985), de autoria de Eloína Monteiro dos Santos; e Ribeiro Júnior, Redentor do Amazonas – Memórias (1997), de autoria de Eneida Ramos Ribeiro.
Artigo publicado em 01.09.2024..
RIBEIRO JÚNIOR E A REVOLUÇÃO TENENTISTA DE 1924 EM MANAUS – O CENTENÁRIO DE UMA GLORIOSA CAUSA PERDIDA
Por Ronald Péres

A Redempção do Amazonas, quadro alusivo à vitoriosa Comuna de Manaus, com destaque para alguns de seus principais líderes: os tenentes do Exército Alfredo Augusto Ribeiro Júnior (visto ao centro, de corpo inteiro), Simas, Barata, Couto e Saint-Clair; e da Marinha, Azamor e Lemos Cunha. Nos medalhões superiores, as imagens dos quartéis da Polícia Militar (à esquerda) e do 27º Batalhão de Caçadores (à direita), representando, respectivamente, as forças militares estaduais e federais confrontadas no levante de 23 de julho de 1924. FONTE: Rede Mundial de Computadores.
PARTE III – OS 36 DIAS DA “REDENÇÃO DO AMAZONAS”
As semanas subsequentes à revolução ficariam marcadas para sempre na historiografia local sob o epíteto de “A Redenção do Amazonas”. Foram apenas 36 dias, mas muito intensos, e, sob o prisma da maioria da população amazonense, sufocada por tantos anos de opressão e medo, seriam encarados como uma espécie de catarse, um expurgo das vilanias perpetradas pela família Rego Monteiro e seus acólitos. Um período marcado pela devassa e organização das contas públicas, pelo confisco de bens dos “decaídos” e pela transparência dos atos do recém instaurado governo interino, todos eles formalizados por meio de sucessivos decretos, editados sem o concurso da Assembleia Legislativa, que teve suas atividades suspensas nesse interregno.
Nas horas que sucederam ao levante, os militares rebelados acordaram, de imediato, em tomar algumas providências urgentes, e que se faziam necessárias a fim de garantir o domínio logístico da cidade e assegurar aos amotinados o controle da situação, o mais rapidamente possível. Para tanto, todas as linhas telegráficas e telefônicas foram cortadas, o que deixou Manaus incomunicável com o restante do país. O vapor Bahia, atracado no porto – o mesmo que, antes do golpe, aguardava o embarque das tropas do 27º BC, a fim de reforçar as tropas federais destacadas para combater o motim paulista - foi apresado e impedido de deixar o cais. E, por fim, foram realizadas algumas prisões de civis e de alguns poucos militares que não haviam aderido à rebelião. O titular do 27º BC, Capitão Dubois, foi designado como comandante geral das tropas sublevadas; sendo logo redigida uma Proclamação ao Povo a ser lida no dia seguinte, 24 de julho, na qual era ratificada a união das Forças Armadas em prol de um objetivo comum, ao mesmo tempo em que eram exaltados os valores do Tenentismo (patriotismo, espírito de sacrifício, dever de proteção à Nação e aos cidadãos brasileiros). Para assumir a vacância administrativa do governo deposto, estabeleceu-se ab initio uma Junta Governativa Trina, formada pelos tenentes Holanda, Barata e Ribeiro Júnior, sendo este último designado afinal, à unanimidade, como líder do novo governo revolucionário.
Em 26 de julho, poucos dias após a sua investidura no cargo, uma enorme massa humana afluiu para a frente do Palácio Rio Negro, a fim de ouvir pela primeira vez a eloquente e inflamada fala proferida pelo altivo tenente de 37 anos, com promessas do fim da humilhação do povo e de dias melhores para o Amazonas. O discurso, epigrafado “Ao Povo Amazonense”, contém palavras que denotam a sua plena consciência em relação às enormes expectativas que pairavam sobre sua pessoa, a par de outras que expressam a sua revolta pessoal diante dos desmandos perpetrados pelo governo deposto:
“Empossado no cargo de governador do Estado do Amazonas pelos meus nobres companheiros das Forças de Terra e Mar, signatários da Deliberação, ontem vulgarizada, assumi a gestão dos seus negócios públicos, serenamente consciente das altas responsabilidades que de tão enobrecedora investidura se originam.
(...)
E a faina destruidora de tão ignóbeis traidores passivos da Nação chegou ao ponto de os seus próprios poderes constituídos se ufanarem de ser os maiores semeadores da ilegalidade, do descrédito público, do pauperismo, da degradação e da desonra.”
Nas entrelinhas de tais frases, patenteada estava a forte personalidade do orador. Uma vez instalado no cargo, Ribeiro Júnior revelou-se de pronto, a despeito de sua juventude, um governante dotado de qualidades essenciais para um chefe de Estado (equilíbrio, responsabilidade, sagacidade e tirocínio), mas que também não se esquivava em agir de modo firme e assertivo na deliberação e condução de seus atos, guiado por um senso maior de justiça social e por um sentimento de profundo respeito perante a sociedade amazonense. Ao mesmo tempo que não permitiu que a cidade mergulhasse num ambiente bárbaro de violência e de linchamento contra seus antigos opressores – o que seria até certo ponto natural, dadas as circunstâncias pregressas vividas pela população – tratou de impor medidas duras, dirigidas a ferir os ladravazes associados à administração anterior naquilo que lhes era mais caro: o bolso. Além disso, estando o sagaz tenente fluminense bem ciente de que a formação de um governo estritamente militar e composto exclusivamente por elementos forasteiros em nada contribuiria para a angariar a simpatia e o apoio dos locais, tomou ele a sábia decisão de cercar-se de um staff de civis extremamente gabaritados, pinçados dentre a elite intelectual local, por si convidados a fim de ocupar importantes pastas do novo governo interino: Crisantho Jobim, escriturário da Delegacia Fiscal, nomeado para a Secretaria Geral do Estado (equivalente à atual Casa Civil); o professor Marciano Armond, para a Diretoria Geral de Instrução Pública (Secretaria de Educação); e o agrônomo-agrimensor Francisco das Chagas Aguiar, designado como novo superintendente (prefeito) de Manaus. E ainda os doutores Olegário de Castro (novo chefe de Polícia, no lugar do famigerado Mário do Rego Monteiro), Francisco Pereira da Silva (delegado auxiliar, subordinado àquele); Paulino de Brito (diretor da Imprensa Oficial e do Arquivo Público); Antônio Lopes Barroso (chefe do Tesouro); e João Franklin de Alencar Araripe (procurador fiscal da Fazenda Pública).
Armado, aos poucos, o novo arcabouço estatal, era hora de pôr “mãos à obra”, a fim de recompor, se mais tardar, as receitas do dilapidado Erário estadual, bem como pôr em dia a folha de pagamento dos funcionários públicos, na medida do possível. E nesse ponto reside, certamente, a mais notória e a mais louvada das ações postas em prática pelo breve governo Ribeiro Júnior, ao longo daquele movimentado verão de 1924: a instituição do chamado “Tributo da Redenção”, um imposto criado em caráter extraordinário, com viés nitidamente confiscatório, à la Robin Hood, que consistia em apresar os haveres bancários depositados em nome de todas as pessoas físicas ou jurídicas sobre as quais houvesse certeza (ou que pairassem fortes suspeitas) de haverem se locupletado ilicitamente às custas do povo; numerário esse que, tão logo apurado, deveria ser imediatamente revertido aos cofres do Fisco. Nesse sentido, um dos episódios mais eloquentes se deu logo após a revolução, quando um contingente militar dirigiu-se até a agência do Banco do Brasil – então localizado no térreo da conhecida casa comercial Panhola, à Avenida Sete de Setembro, atrás da Igreja Matriz – e, lá estando, compeliu o gerente a apresentar-lhes a escrituração detalhada, com balancetes, saldos e extratos bancários referentes às contas e aos valores ali depositados e movimentados pelas pessoas ligadas ao ancien régime. Para estupor de todos os presentes, descobriu-se a existência de um depósito em nome do ex-chefe de Polícia, Mário do Rego Monteiro, na cifra astronômica de 300 contos de réis, uma pequena fortuna, certamente destinada a “engordar” mais um pouco as já recheadas algibeiras do clã, ou, quiçá, financiar possíveis negócios escusos com terceiros. Diante de tal descalabro, Ribeiro Júnior, indignado, ordenou ao favorecido que, sem vacilações, assinasse um cheque em favor do banco, a fim de estornar a quantia inexplicavelmente e injustificadamente depositada em sua conta. Outras casas bancárias foram igualmente auditadas, e tudo que nelas porventura fosse detectado a título de numerário acumulado pelos membros da “lista negra” foi confiscado em nome do povo do Amazonas.
O confisco não ficaria restrito, todavia, ao dinheiro acumulado em espécie, mas também a toda sorte de bens voluptuários (automóveis, mobília, joias e artigos de luxo) encontrados nas residências daqueles, passíveis de serem leiloados em prol do rápido incremento das receitas estaduais. Era necessário, com a máxima celeridade, dar uma satisfação ao povo, e, para isso, nada mais simbólico do que sanear as contas públicas às expensas dos próprios agentes causadores ou propulsores daquela calamitosa situação. Nesse contexto expiatório, os leilões – que, de praxe, eram realizados no interior dos imóveis particulares, abertos à visitação pública, com a lista de bens postos à venda previamente divulgada pelos jornais – passaram a constituir uma atração popular, com multidões comparecendo diante das casas dos “exploradores do suor do povo” para conferir de perto a dilapidação de seu espólio “maldito”. Dessa forma se desenrolou, por exemplo, a hasta pública realizada às portas do palacete de Joaquim Lobato de Faria, ex-chefe do Tesouro (cargo equivalente a secretário de Fazenda), à Avenida Joaquim Nabuco, defronte à Beneficência Portuguesa. No mesmo viés se realizou a expropriação de três caros automóveis, pertencentes a Cláudio, Mário e Edgard do Rego Monteiro (filhos do governador deposto, César do Rego Monteiro), realizada em plena Avenida Eduardo Ribeiro, sob manifestações de júbilo dos presentes. Ambos os eventos constituíram-se em verdadeiros espetáculos públicos, ao ponto de serem retratados na famosa Revista da Semana, periódico carioca de grande circulação nacional, como dois dos momentos mais emblemáticos da “Revolução do Amazonas”.
Outra frente de arrecadação foi aberta, por óbvio, na própria esfera de atuação do Tesouro Estadual (Secretaria de Fazenda), quando o novo inspetor-chefe designado pelo governo revolucionário, Antônio Barroso, contabilista dos mais renomados e respeitados na cidade, após proceder a uma apuração de responsabilidades no âmbito interno, fez publicar um edital notificando os senhores Félix de Toledo e Álvaro de Carvalho, para, na qualidade de antigos exatores do Município de Maués, recolherem aos cofres públicos, no prazo de 60 dias, as respectivas quantias de 383 mil réis e 27 contos e 147 mil réis, em relação às quais não lograram prestar as devidas contas.
Em seu livro de memórias, intitulado Ribeiro Júnior – Redentor do Amazonas (1997), Eneida Ramos Ribeiro, filha caçula do líder revolucionário – que não era sequer nascida à época em que aquele foi alçado à curul governamental do Estado pela força das armas – nos traz alguns detalhes preciosos acerca do modus operandi na arrecadação do Tributo da Redenção. Informações que a autora certamente obteve, ainda menina, da narrativa de seu próprio pai; ou, já moça, das lembranças de sua mãe, Belisa, também testemunha ocular dos fatos. Assim descreve Eneida:
“A cobrança do Tributo da Redenção, em geral, era feita à vista do povo. O dinheiro era recolhido em cestos de vime. Ribeiro Júnior preparava uma lista de nomes de pessoas e entidades que julgava terem enriquecido à custa do Estado. Mandava prendê-los e chamá-los ao palácio. Lá, o governador revolucionário entregava um cheque e dizia: ‘assine-o!’. Assim perfez seiscentos e vinte e quatro contos. Vende trinta e três vacas e seis carneiros da fazenda de Cláudio do Rego Monteiro por seis contos e a mobília do ex-tesoureiro estadual Lobato de Faria, que rendeu vinte e dois contos. Tudo era recolhido ao Tesouro estadual, através de guias. Depois, se efetuava o pagamento dos funcionários. Essa atitude do governo revolucionário encontra ressonância direta no funcionalismo público e indireta nos comerciantes. (...) Abria-se um novo horizonte de vida para o povo amazonense.”
Corroborando essa vertente expiatória, foi editado o Decreto nº 1.483, de 28 de julho, que extinguiu a Polícia Militar - há muito convertida, na prática, numa milícia a serviço exclusivo da família Rego Monteiro – imediatamente substituída pela chamada Guarda Cívica, sob o comando do Capitão Arthur Martins da Silva (por sua vez respondendo diretamente ao Tenente Barata), corporação criada com a mesma finalidade de garantir a segurança pública, porém expurgada de seus “maus elementos”. Outra medida de força, muito aplaudida pelas famílias, foi a que determinou o fechamento de todas as “casas de quino” (uma espécie de loteria) existentes no perímetro urbano de forma clandestina. Em número de cinco – localizadas às ruas dos Andradas, Quintino Bocayuva, Henrique Martins, Lobo D´Almada e uma quinta no bairro dos Tocos (Aparecida) - eram administradas por policiais civis, que, na verdade, nada mais eram do que meros “testas-de-ferro” do capo Mário do Rego Monteiro. Estas casas de tavolagem, além de gerarem impagáveis “dívidas de jogo” para os seus habitués, também se prestavam ao exercício explícito da agiotagem e da extorsão, sendo uma fonte de enriquecimento ilícito não apenas dos contraventores em si, mas de toda uma rede de beneficiários direta ou indiretamente envolvida com o seu funcionamento. Decreto similar impôs taxações sobre a comercialização de fumo e bebidas alcoólicas, uma decisão que, no mesmo viés daquela, também foi bem recebida por muitos, assim como a moratória baixada pelo Decreto nº 1.493, de 11 de agosto, que prorrogava o prazo de pagamento, sem ônus, do Imposto Predial relativo aos exercícios fiscais de 1922, 1923 e 1924. Os decretos “saneadores” - assim como os confiscos, os anúncios dos leilões e o produto líquido da arrecadação de ambos - eram veiculados diariamente através do Jornal do Povo, o órgão de propaganda revolucionária, editado pelo governo interino na gráfica da própria Imprensa Oficial, e que saiu do prelo já a partir do dia seguinte ao levante, 24 de julho; sem prejuízo, contudo, dos demais órgãos noticiosos locais, que, uma vez cessados os ânimos dos primeiros dias após a refrega, voltaram a circular normalmente. Ainda em pleno contexto da revolução, o jornalista Júlio Uchôa pôs nas ruas o periódico A Liberdade, que circulou de 13 de agosto de 1924 a 10 de fevereiro do ano seguinte, perfazendo um total de 158 números. Editado no mesmo formato do Jornal do Povo, o jornal de Uchôa tinha também por conteúdo dar ciência aos leitores de todas as novidades implementadas pelo governo interino, e ficou famosa pela coluna intitulada “A Gazeta Negra”, que, como se deduz do próprio nome, enveredava por um viés de delação de pessoas ligadas, por sua má conduta, ao regime deposto.
Todas essas sucessivas e acertadas atitudes – somadas ao fato, deveras incomum, de Ribeiro Júnior abrir as portas do Palácio Rio Negro para a concessão de audiências privadas aos cidadãos que o procurassem com pleitos legítimos - geraram um forte sentimento de empatia entre os revolucionários e a população, que decodificava tais medidas “higienistas” como parte de um contexto maior, de moralização do Estado; e, cada vez mais, via na figura digna, austera, impoluta, eloquente e viril de Ribeiro Júnior um herói, uma espécie de líder messiânico, enviado pelos Céus para ser o seu libertador, o “Redentor do Amazonas”, como logo passou a ser alcunhado por todos, inclusive pela Imprensa. Um homem verdadeiramente idolatrado por homens e mulheres, e que, à medida que sua fama de benfeitor se espalhava, passou a ser objeto de espontânea reverência por parte de seus admiradores - e, principalmente, de suas admiradoras - por onde quer que passasse.
Prova cabal disso é notícia veiculada pelo jornal pernambucano A Província, que, na edição de 28 de agosto de 1924, assim descreveu a passagem do governador pelo Instituto Benjamin Constant:
“(...) Uma das primeiras visitas feitas pelo governador revolucionário foi ao Instituto Benjamin Constant, educandário de meninas órfãs, dirigido pelo desembargador Gaspar Guimarães, diretor da Faculdade de Direito de Manáos, e membro, em exercício, do Superior Tribunal de Justiça no Amazonas. Constando a saída de alunas, em massa, explicou o diretor que o fato se prendia a férias e à suposição de que não haveria recursos para manter o estabelecimento. O Tenente Ribeiro Júnior ordenou, imediatamente, que fosse pago o custeio do Instituto, pelo Tesouro, e visitou o edifício, de que recolheu boa impressão. À saída, o chefe do governo foi vivamente ovacionado pelas alunas, que ofereceram ao Tenente Ribeiro Júnior vários ramos de rosas, assim como ao oficial que o acompanhava, Segundo-Tenente Boanerges Damasceno Couto, comandante da guarda do Palácio Rio Negro, residência do governador, e sede da administração do Estado.”
O mesmo viés de júbilo estudantil também marcou a homenagem ao líder havida duas semanas depois, esta narrada sob o prisma da carinhosa memória filial de Eneida Ramos Ribeiro (op. cit.), que, arrematando um pouco mais adiante, também descreve, de forma minuciosa, o espontâneo culto popular que, no espaço de pouco mais de um mês, se formara em torno de Ribeiro Júnior, uma devoção quase religiosa, e que era alimentada por meio das mais diversas e icônicas representações:
“A 7 de agosto de 1924, o governo revolucionário é alvo de uma sincera e justa manifestação das escolas Normal e Preparatória. Voltando da visita a várias repartições públicas, o governador é coberto pelas flores das alunas ao subir as escadas do Palácio Rio Negro. Edith Xerez discursa, enaltecendo o apoio das normalistas à causa da liberdade e da justiça. Comovido, Ribeiro Júnior agradece e depois acompanha as moças até a escadaria.
(...)
A figura e as atitudes de Ribeiro Júnior facilmente dão margem a uma representação exagerada pela manifestação popular. (...) Surgem leques, anéis, selos, quadros, cartões-postais, com a sua fotografia. Seus autógrafos são disputados. (...) Joaquim Gonçalves de Araújo, uma das maiores fortunas de Manaus, conhecido como J. G. Araújo, financia grande parte do material sobre Ribeiro Júnior, feito na gráfica ‘Palais Royal’. Nas lojas comerciais, armam-se verdadeiros altares com seu retrato e os de seus companheiros, tidos como estrelas da Revolução. Os cantadores e romancista populares esbanjam versos enaltecendo sua figura e seus atos. (...) De uma publicação do gênero literatura de cordel, folheto pobremente impresso, com o título ‘A Epopeia do Amazonas’, e da autoria de Manjerona Assis, encontram-se versos mais cuidados. Descrevendo o homem Ribeiro Júnior, diz:
O Governador revolto
Era um novo, era um tenente.
Ribeiro Júnior, distinto,
Reto, justo, bom, valente
E honrado, severo, presto:
Caráter independente.”
A cada novo decreto editado, a cada discurso proferido, a cada compromisso ou solenidade a que comparecia, a popularidade do “Redentor” aumentava, passando a evoluir numa espiral crescente, até culminar, de forma emblemática, na “apoteose” do dia 19 de agosto: um grande desfile organizado em sua honra pela Legião Cívica – uma associação civil, sem qualquer relação com a Guarda Cívica paramilitar recentemente criada - e que contou com a participação massiva da sociedade organizada (representantes de escolas públicas e particulares, do operariado, do funcionalismo público, das famílias, etc). Liderando o cortejo, um carro aberto ostentando um imenso retrato de Ribeiro Júnior deixou a Praça de São Sebastião, local onde se concentravam os partícipes, desceu a Avenida Eduardo Ribeiro e subiu a Avenida Sete de Setembro até o Palácio Rio Negro, onde uma multidão aguardava a chegada do préstito. No trajeto, da janela das casas, a multidão atirava bouquets de flores naturais, e aclamava o nome não apenas de Ribeiro Júnior, mas de todos os “redentores do Amazonas” – os oficiais do 27º BC e da Flotilha. O governador militar, emocionado, mais uma vez saiu ao jardim do palácio e discursou ao povo, sendo grandemente ovacionado por todos.
***
Reinava na cidade um clima generalizado e incontido de felicidade e otimismo, como não se via há bastante tempo. O estado de espírito dos amazonenses atingia píncaros de euforia, e pode bem ser mensurado pela narrativa insuspeita do professor Agnello Bittencourt (1876-1975) – eminente geógrafo, historiador, cronista e testemunha ocular da História do Amazonas por quase um século – contida em seu Dicionário Amazonense de Biografias (1973), no verbete dedicado à memória do bravo tenente subitamente convertido em uma deidade política:
“(...) Os dias de governo de Ribeiro Júnior foram trepidantes, trespassados de uma atmosfera de ansiedade, e o povo ávido de novos acontecimentos. (...) Além do nervosismo, a alegria era a tônica de todos os espíritos. Pessoas tomavam bondes em que não pretendiam viajar e homens austeros iam para a rua sem gravata, numa terra em que esse objeto de indumentária era e ainda é um sinal de distinção. Criaturas que não saíam de casa eram vistas nas ruas e nos comícios, e até senhoras e senhoritas da sociedade, numa antecipação do feminismo, iam às praças públicas em estímulo e agradecimento aos revolucionários. Numerosos fatos poderiam ser citados para demonstrar o estado psicológico do povo baré, naqueles dias de euforismo e grandes esperanças. (...) Ribeiro Júnior era um cidadão aplaudido por qualquer ato que praticasse”
Alçado à condição de “lenda viva” e líder supremo da terra que redimiu e que abraçou como sua, o jovem e idealista Alfredo Augusto Ribeiro Júnior sonhava bem mais alto, contudo. Almejava seguir adiante, expandindo os frutos da revolução plantada por si e por seus companheiros de luta para além das fronteiras amazonenses. E assim o fez. Ou, pelo menos, tentou...
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Artigo publicado em 18.08.2024.

Dois flagrantes colhidos no dia 26 de julho de 1924, dias após a tomada do poder pelos tenentes rebeldes, retratando a multidão que afluiu ao Palácio Rio Negro para ouvir o primeiro discurso proferido por Ribeiro Júnior (em destaque, no medalhão), já designado como chefe do governo militar revolucionário do Estado do Amazonas. FONTE: Revista da Semana (RJ).

Leilão dos automóveis pertencentes aos oligarcas Cláudio, Mário e Edgard do Rego Monteiro (filhos do governador deposto, César do Rego Monteiro), realizado em plena Avenida Eduardo Ribeiro, às vistas do povo. FONTE: Revista da Semana (RJ), reproduzindo uma fotografia de autoria de Silvino Santos.

Ribeiro Júnior idealizado como “Ídolo do Povo” nas páginas de um periódico amazonense de grande circulação à época. Fotografia de autoria de Gil Ruiz, veiculada através do Blog do Coronel Roberto (Rede Mundial de Computadores).
RIBEIRO JÚNIOR E A REVOLUÇÃO TENENTISTA DE 1924 EM MANAUS – O CENTENÁRIO DE UMA GLORIOSA CAUSA PERDIDA
Por Ronald Péres

Grupo de militares do 27º Batalhão de Caçadores posando junto à entrada lateral do Palácio Rio Negro dias após a tomada do poder pelas forças revoltosas conjuntas do Exército e da Marinha no levante de 23 de julho de 1924. FONTE: Acervo do historiador Abrahim Baze, disponibilizado através do Portal Amazônia/Rede Mundial de Computadores.
PARTE II – O LEVANTE
Em março de 1924, cerca de um mês antes do acintoso baile à Segundo Império promovido pelo governo Rego Monteiro, desembarcara no Roadway do porto do Manaus o militar fluminense Alfredo Augusto Ribeiro Júnior, ingresso no Exército desde 1906, a fim de apresentar suas credenciais de primeiro-tenente (patente à qual fora promovido em 1920) junto ao 27º Batalhão de Caçadores, sediado à Praça General Osório, então sob o comando do Capitão José Carlos Dubois. Vinha transferido do 26º BC, em Belém (e, antes, do 25º BC, em Recife), não por vontade própria, mas “por motivos disciplinares e proteção dos centros de prováveis conflitos”, segundo os relatórios oficiais da época. como uma espécie de punição disciplinar por suas atitudes e declarações de cunho político “incômodo”, manifestadas interna corporis, nos anos pregressos, em apoio aos atos rebeldes propagados pelo Movimento Tenentista - uma postura naturalmente tida como inadmissível por alguns oficiais de alto escalão simpáticos ao governo federal, e passível, portanto, de sanções, explícitas ou veladas. Nesse particular, aliás, o “degredo amazônico” imposto a homens de farda tidos como insubordinados não constituía nenhuma novidade, sendo uma prática usual dos altos comandos desde os tempos do Império, tendo sido infligido a figuras históricas de vulto, como Floriano Peixoto e Eduardo Ribeiro, por exemplo, ambos enviados ao Amazonas, por motivos similares, ligados ao emergente Movimento Republicano, em finais da década de 1880.
Ao contrário daqueles ex-governantes, que eram solteiros à época, Ribeiro Júnior chega à capital amazonense devidamente acompanhado da família que havia constituído, e que, até então, residia em Barra do Piraí (RJ): sua esposa, a gaúcha Belisa Ramos (a quem era extremamente devotado); e os seis filhos do casal - Ivan, Túlio, Telmo, Darcy, Cecy e Dalmo, nascidos entre 1911 e 1920. A despeito de seu parco soldo de militar de baixa patente, consegue alugar uma residência de excelente padrão, à Rua Dez de Julho, situada estrategicamente atrás do quartel do 27º BC, onde se instala junto com os seus (o imóvel, uma bela casa do início do século XX, geminada com outras três, ainda está de pé até os dias atuais). Extremamente politizado como era, logo trata de se inteirar da conjuntura política e econômica pela qual atravessava o Amazonas, e das misérias padecidas pelos cidadãos locais, submetidos ao perverso, opressor e extorsivo desgoverno da oligarquia Rego Monteiro. Ao mesmo tempo, trava contato com outros colegas de farda, todos forasteiros, assim como ele, e que também haviam sido “exilados” na guarnição federal de Manaus em razão de seu espírito sedicioso manifestado preteritamente em casernas de outras regiões, igualmente insuflados pelos ideais do Tenentismo. De todos estes jovens militares de espírito rebelde, talvez aquele que mais tenha exercido influência e ascendência sobre Ribeiro Júnior naquele momento crucial tenha sido o seu homólogo, o primeiro-tenente paraense Joaquim de Magalhães Cardoso Barata, transferido apenas dois meses antes dele, em janeiro de 1924, como retaliação por seu envolvimento direto numa frustrada tentativa de prender o ministro da Guerra, Fernando Setembrino de Carvalho, em dezembro de 1923, durante a visita daquela autoridade à cidade paranaense de Ponta Grossa. Atentado que, na verdade, constituía a “senha” para um plano maior, visando, tal e qual se pretendera na revolta de 1922, uma articulação dos batalhões federais baseados no Paraná e na capital federal, o Rio de Janeiro, a fim de atingir o poder central, depor o Presidente Arthur Bernardes, e, com ele, a malfadada “Política do Café com Leite”, com todas as suas mazelas: a violência dos “coronéis” rurais nos sertões do Brasil, a fraude nas urnas propiciada pela manipulação (por parte daqueles) dos célebres “currais eleitorais” e dos “votos de cabresto”, os conchavos dos oligarcas visando o favoritismo dos seus apadrinhados nos negócios públicos, etc, etc, etc. A velha bandeira do ideal tenentista – aquela cujo dístico propugnava a radical mudança desse intolerável stablishment por meio da luta armada - permanecia desfraldada, mais do que nunca. E, junto dela, as adormecidas brasas de um espírito de luta que, na Manaus de meados de 1924, encontrariam as condições necessárias de temperatura e pressão e as indispensáveis fagulhas para convertê-las novamente em chamas altas e ardentes.
E que “fagulhas” sucessivas foram essas, que culminaram no “incêndio” tenentista de 23 de julho daquele ano, além, evidentemente, da notória falência do Estado e da indignação civil diante dos atos ominosos perpetrados pela malta reunida em torno do clã Rego Monteiro? Basicamente, foram dois os estopins do levante amazonense, dois “palitos de fósforo”, riscados na hora certa e no lugar certo, digamos assim.
O primeiro leitmotiv, embutido no quadro geral da política local e decorrência direta daquele degradante status quo, foi a explícita intenção de César do Rego Monteiro, o régulo de plantão, de impor como favorito à sua sucessão o nome do advogado Aristides Rocha, recém-eleito senador, e, não por acaso, seu concunhado (casado com D. Pergentina Rezende, irmã de D. Elisa, a detestada primeira-dama). Anúncio que provocou grande apreensão entre os opositores do governo e entre os cidadãos mais politizados, já que tal pretensão, em se concretizando (como certamente se daria, pela ordem “natural” da política de então), outra coisa não significava senão a continuidade dos Rego Monteiro no poder, pelos quatro anos seguintes. E a continuidade da generalizada miséria material e moral do povo, por via lógica de consequência. Nesse diapasão, a segurança do “César”, no tocante ao seu pleno domínio das rédeas da situação, era de tal monta que, em fins do mês de junho (cerca de um mês antes de deflagrada a rebelião), aquele deu-se ao luxo de “pedir” da Assembleia Legislativa uma licença para ausentar-se formalmente do cargo sine die, a pretexto de um necessário “tratamento de saúde” na Europa, acompanhado de sua frívola consorte. E, uma vez assentido o pedido, assim o fez, sem qualquer pudor, deixando, na sede vacante, o presidente do Legislativo (e seu genro), Turiano Meira, formalmente investido no exercício das funções governamentais. Instaurado estava, pois, o cenário mais que perfeito para a materialização do conhecido adágio popular que reza que “quando os gatos saem, os ratos fazem a festa”. Com a diferença que, nesse caso específico, poder-se-ia afirmar, sem qualquer hipérbole, que a ordem dos animais citados na máxima fora invertida. E parcialmente vertida para o singular, no caso dos roedores. No dia 23 de junho, o periódico carioca A Rua: Semanário Ilustrado publicava uma nota intitulada “O Amazonas Acéfalo”, pela qual se podia bem aquilatar a medida do sentimento geral de desalento e indignação do povo amazonense diante do estado caótico a que estava submetido:
“O Sr. Rego Monteiro partiu para a Europa e deixou o Amazonas acéfalo. (...). Deixou tudo desorganizado, o tesouro vazio, e o funcionalismo sem receber os seus vencimentos atrasados há alguns meses. Segundo um telegrama que recebemos, a população está agitadíssima, reclamando do governo federal, por intermédio dos seus representantes no Congresso, providências enérgicas no sentido de ser o Amazonas reconduzido ao regime da ordem e da legalidade, chamando-se à responsabilidade o governador que tantos danos tem causado ao seu infeliz povo.”
Ao clamor popular associou-se um segundo fator-isqueiro, que muito contribuiu para deflagrar o levante. Em 5 de julho de 1924 – data eleita estrategicamente como lembrança da passagem do segundo aniversário da revolta do Forte de Copacabana - estoura nos quartéis da cidade de São Paulo uma insurreição liderada por um general reformado, Isidoro Dias Lopes, e que reunia em torno de seus objetivos comuns as forças do Exército e da Polícia Militar daquela importante capital. Uma entente que, dando concretude aos sufocados anseios das casernas, não possuía, entretanto, um caráter de rebelião popular (tanto que rechaçou de pronto a adesão dos operários anarquistas), mas sim de um motim militarista stricto sensu, com vistas, mais uma vez, à reinserção das Forças Armadas no contexto político nacional. A despeito de tal viés reducionista, a sedição acende novamente a chama revolucionária em todo o país, e que rapidamente teria ecos em diversos outros estados nas semanas seguintes, com movimentos similares deflagrados por homens de armas, profundamente descontentes com o regime e com os rumos da nação. O governo federal, como era de se esperar, reage à altura, e rapidamente convoca tropas de todas as suas guarnições acantonadas do Oiapoque ao Chuí para se juntarem às hostes legalistas de resistência ao motim paulista. Remetido de Santarém no dia 21 de julho, aporta no Roadway de Manaus o vapor Bahia, do Lloyd Brasileiro, com a finalidade de embarcar o destacamento das Forças Armadas do Amazonas para o teatro de operações; o que gera, naturalmente, enorme insatisfação por parte dos jovens tenentes do 27º BC, bem como de seus homólogos da Marinha, simpatizantes do movimento insurreto. Um clima de tensão paira no ar. A “conjunção astral” propícia para o êxito de um coup d´état em nível local, devidamente legitimado pelas circunstâncias, estava formada. Não havia mais nada a esperar. Era apenas uma questão de tempo, conveniência e oportunidade.
As forças de terra e mar baseadas na capital amazonense resolvem, então, irmanar-se em torno de seu obtivo comum: depor o famigerado governo Rego Monteiro, custasse o que que custasse; e fazer de Manaus uma “cabeça de ponte” para a construção de uma aliança militar no eixo norte-nordeste, para, quiçá, dar suporte aos revoltosos de São Paulo e de outros estados. As casernas se agitam e conspiram entre si, e de tal complô logo sobressaem, naturalmente, as lideranças do grupo. Os “cabeças” do movimento nortista eram todos, em sua grande maioria, jovens tenentes do Exército ou da Marinha, transferidos para a Amazônia “por conveniência do serviço militar”, devido à sua filiação ideológica com os ideais do Tenentismo, e seus antecedentes de engajamento em episódios de cunho político em seus estados de origem. Eram eles, além de Ribeiro Júnior e Magalhães Barata, os primeiros-tenentes Abelardo Rangel, Aluísio Pinheiro Ferreira, Aurélio Linhares, José Backer Azamor, José Dias Vieira, José Lemos da Cunha, Raymundo Villaronga Fontenelle, Saint-Clair Peixoto Paes Leme e Sebastião Mendes de Holanda; e os segundos-tenentes Abílio da Costa, Euclydes Joaquim Lins e Antônio Mendes Silva. Com patente superior, apenas dois insurgentes: os capitães José Carlos Dubois (comandante do 27º BC) e Francisco Batista de Almeida (médico).
O calendário marcava a data de 23 de julho de 1924. O dia transcorrera sem qualquer intercorrência, com a cidade imersa em sua rotina laboral de meio de semana e a população convivendo com as agruras estivais trazidas pelo tempo seco e o forte calor do verão amazônico. No porto flutuante, o movimento de cargas e de navios de bandeira nacional ou estrangeira, ao longo de todo aquele mês, evidenciava, ainda que como pálida reminiscência dos seus grandes dias, a resiliente relevância comercial da antiga capital mundial da borracha, mesmo em plena débacle. À tarde, no campo do Parque Amazonense, havia tido lugar o treino da equipe do Nacional Football Club; e, à guisa de diversão cinematográfica, o Polytheama anunciava a estreia, às 8h15m da noite, do filme Aparências Fingidas. O título da película norte-americana não poderia ser mais irônico, diante da fingida aparência de normalidade que pairava no ar.
Não sabemos se o concorrido cinema da Avenida Sete de Setembro chegou a abrir sua bilheteria naquela noite, pois, um pouco antes disso, a rotina da cidade de Manaus foi subitamente abalada com a concretização daquilo que, “à boca pequena”, nos meios oficiais e nas conversas discretas dos botequins, já se comentava, e, até certo ponto, se previa: o levante das tropas federais do 27º BC, em consórcio com seus companheiros de farda da Flotilha do Amazonas. Por volta das 19 horas, com boa parte do comércio de portas cerradas e muitos dos civis já recolhidos em suas casas para a sagrada hora do jantar em família, um batalhão de dezenas de militares deixa o quartel da Praça General Osório, e põe-se em marcha perfilada e ritmada pelas ruas, como que posto em formação para um extemporâneo desfile cívico. Tomando a Rua José Clemente, descem a Avenida Eduardo Ribeiro, diante dos olhos de espanto e incredulidade dos passantes que, àquela hora tardia, ainda transitavam pela principal via da cidade, vindos dos bares, das lojas e das repartições das adjacências. Os soldados, altivos e garbosos, portam consigo seus longos e potentes fuzis e envergam seus discretos uniformes na cor cáqui, arrematados com talabartes (presilhas) de couro, quepe e botas pretas. Contudo, a presença de uma peça móvel de artilharia (um canhão sobreposto a uma carroceria), sendo conduzida em meio à massa legionária, tornava o inusitado espetáculo um tanto mais intimidador aos olhos dos circunstantes. Definitivamente, aquele não parecia ser um mero exercício de tropas, como ocasionalmente costumava ocorrer. E não era, de fato.
Avizinhava-se o cruzamento com a Avenida Sete de Setembro, eixo tradicional dos desfiles escolares e militares, e, portanto, o caminho natural por onde o batalhão deveria normalmente infletir, rumo à Praça da Polícia – na qual estava justamente sediado o quartel da Polícia Militar, centro das forças armadas estaduais. Todavia, qual não deve ter sido a surpresa dos frequentadores sentados à porta da Leitaria Amazonas – o mais elegante café de Manaus, normalmente lotado àquela hora do “lusco-fusco” – quando, de suas cadeiras de vime dispostas em torno de pequenas mesas de ferro, viram a tropa enveredar pela estreita e pouco permeável Rua Henrique Martins, situada um quarteirão antes daquela avenida, com que perfazendo um traçado paralelo (e mais discreto) na mesma direção? Estava, agora, muito claro perante as testemunhas oculares daquela marcha inaudita, qual era o objetivo real de seus organizadores, qual seja, o ataque - célere, cirúrgico e eficaz – à caserna da “Briosa” PM, de sorte a “estrangular” no nascedouro qualquer tipo de resistência armada ao “golpe cívico” urdido pelos líderes da revolução.
E assim foi feito. Uma vez tendo alcançado a ampla pista da Avenida Treze de Maio (atual Getúlio Vargas), a tropa revoltosa pôs-se em posição de combate diante do quartel da PM, do outro lado da Sete de Setembro. Aquele era um dos cruzamentos nevrálgicos da cidade, pois conjugava em seu perímetro dois cinemas (Polytheama e Alcazar), uma escola secundária (o tradicional Ginásio Amazonense D. Pedro II), alguns botequins e uma das praças mais frequentadas da capital. É crível afirmar que, àquela hora, no início da noite, ainda deveria haver muitas pessoas circulando em seu entorno, de sorte que os federais hão de ter dado algum tipo de aviso aos civis – por meio de disparos ou rojões soltos no ar - para que se evadissem do local o mais rapidamente possível. Um sinal de alerta dirigido, evidentemente, também aos seus oponentes aquartelados no batalhão estadual, para que depusessem as armas, evitando, assim, um desnecessário derramamento de sangue. Mas isso é tão somente uma especulação, já que os detalhes do confronto se tornaram difusos e voláteis com o passar do tempo. O que é certo, conforme se extrai de reportagens dos jornais da época, relatórios, depoimentos e outras fontes primárias, é que houve uma intensa troca de fuzilaria de parte a parte entre as forças beligerantes (não sabemos se o canhão chegou a ser usado), numa carga que durou o tempo aproximado de 35 minutos, findo o qual a soldadesca estadual – em número desproporcionalmente reduzido frente aos seus litigantes, na proporção de um homem para dez – optou, sabiamente, por não mais oferecer resistência e se rendeu, tendo saído mais gravemente ferido da contenda tão somente o comandante da PM, Coronel Pedro José de Souza, o último a capitular diante dos revolucionários, comandados naquela ação decisiva pelo experimentado e destemido Tenente Magalhães Barata.
Uma vez atingido o objetivo número um, com o pleno domínio do quartel da PM pelas forças revolucionárias, os líderes do movimento destacaram imediatamente um pelotão, liderado pelo Tenente Ribeiro Júnior, a quem coube o encargo de outra importante missão, de cunho mais simbólico do que propriamente bélico, mas não menos relevante: a ocupação do Palácio Rio Negro, sede do poder estadual, a fim de depor e prender o governador em exercício, Turiano Meira, e instaurar a nova ordem, manu militari. Não sabiam os revoltosos, contudo, que o esperto Turiano ali não mais se encontrava, pois, muito bem informado como estava acerca do desenrolar dos acontecimentos que antecederam o golpe, por meio de seus contatos privilegiados na Marinha, tratou de pôr um prática um plano de fuga que já havia elaborado previamente em conluio com aqueles, evadindo-se com sua família, momentos antes da invasão, por uma canoa estrategicamente posicionada às margens do Igarapé de Manaus, que passa por trás do palácio. O episódio rocambolesco, que entrou para o anedotário político do Amazonas, é narrado em vivas cores pelo jornal O Brazil (RJ), edição do dia 30.08.24 (por sua vez reproduzindo matéria veiculada em A República, do Pará), e tem como base o insuspeito testemunho de Ildefonso Marinho, respeitado cidadão manauara e testemunha de muitos dos acontecimentos daquele verão de 1924.
“Dias antes de rebentar a revolta, o governador conferenciara com o Capitão-de-Mar-e-Guerra Horminta Maria de Albuquerque, comandante da Flotilha, pedindo o seu auxílio no caso de qualquer movimento por parte das forças de terra, cuja sublevação vagamente se anunciava. O comandante havia prometido um auxílio eficaz, sob a condição, entretanto, do Dr. Turiano recolher-se a bordo de um dos navios da Flotilha, tendo até ficado assentado definitivamente que esse vaso de guerra seria a canhoneira ‘Missões’. Logo após essa conferência, o governador, a pedido do referido militar, mandou fornecer lenha para os navios da Flotilha, o que foi feito pela Inspetoria das Águas, retirando-se esse combustível da depositada da secção de Bombeamento de Água.
(...)
Muitos dias antes da sublevação, o presidente Turiano Meira trazia, preventivamente, uma lancha atracada nos fundos do palácio, num pequeno cais, que dá para o Igarapé denominado ‘Primeira Ponte’. No momento da fuga o governador procurou refugiar-se na lancha em questão, vendo frustrado o seu intento por ter-lhe faltado o ‘chauffeur’, que desaparecera no instante em que o 27º BC iniciara o tiroteio sobre o Quartel de Polícia. Nessa emergência, tomou uma canoa, e, com sua esposa, três filhinhos, uma criada e um soldado, desceu o igarapé em direção à Canhoneira ‘Missões’, vaso de guerra destinado a recebê-lo, de acordo com o que ficara combinado na Capitania do Porto. Pouco adiante seguia outra embarcação, tripulada por dois marinheiros nacionais. Como da ‘Missões’ atirassem sobre os dois marujos, por não terem estes gritado ‘a senha’, o governador, ao ver cair n’água, morto um dos tripulantes da primeira canoa, buscou outro rumo. Encontrando em seu caminho, ancorado, o “gaiola” ‘Rio Curuçá’, aí deixou os seus filhos e a criada, seguindo com a esposa na perigosa canoa que começava a fazer água. Longa e penosa foi a travessia até o sítio ‘Cantídia’, de propriedade do Coronel José Alves, onde permaneceu até a tarde de 26, quando o Coronel Pedro Freire, secretário geral do Estado, depois de ter conseguido as necessárias garantias do Capitão Dubois, o foi buscar em lancha.”
Com a ausência de Turiano Meira, a sede do governo foi deixada aos cuidados de seu cunhado, Mário do Rego Monteiro – um dos filhos do “César” e o odiado chefe de Polícia, que tantas ignomínias praticara contra seus concidadãos, por meio dos métodos truculentos de que se valia a gang de facínoras por si comandada. Ironicamente, a este caberia o humilhante papel histórico de se ver acossado, rendido e preso por Ribeiro Júnior, quando da tomada do Palácio Rio Negro, e, ainda assim, sem abrir mão da arrogância que lhe era inerente. Mais uma vez é a narrativa de Ildefonso Marinho (op. cit.) que nos fornece detalhes vívidos desse momento histórico, bem como da detenção, naquela mesma noite do dia 24 de julho, de outras importantes figuras ligadas ao governo decaído:
“Da mesma Força que, após o tiroteio, ocupou o quartel de polícia, e que era comandada pelos tenentes Joaquim Magalhães Cardoso Barata, Pedro Alves da Cunha e Sebastião Holanda, foi destacado um pelotão para ocupar o Palácio Rio Negro, o que foi feito sem resistência alguma, pois ali encontraram desarmada a respectiva guarda, que havia recebido ordens do Dr. Meira para não reagir. No palácio foi encontrado o chefe de Polícia, Dr. Mário do Rego Monteiro, a quem foi dada voz de prisão pelo Tenente Ribeiro Júnior. Contava-se na cidade, a respeito dessa prisão, o seguinte episódio:
No momento em que o tenente, comandante da Força, o intimou a entregar as armas que tivesse, o Dr. Mário respondeu que tal coisa não faria, por ser o chefe de Polícia do Estado. Ante a insistência do tenente, o Dr. Mário, ao entregar o revólver que trazia, perguntou se aquele oficial não queria também a carteira e o relógio, provocando essa frase grande indignação ao comandante do pelotão, que, em altos gritos, começou a dizer que os revoltosos não eram ladrões.
(...)
O Dr. Caio Valladares, um dos chefes governistas de maior prestígio, foi detido na noite de 24 pelo tenente Aluísio Ferreira, ficando preso, sob palavra, na residência do Dr. Bernardino Paiva. Relaxada a prisão, na manhã seguinte, regressou o ilustre advogado à sua residência. O Dr. Edgar do Rego Monteiro, superintendente da capital, foi preso na mesma noite em que saíra de automóvel com o diretor da Imprensa Oficial, sendo que neste nada fizeram os revoltosos...”
E arremata seu depoimento, falando a respeito dos sucessos envolvendo também a Marinha, naquele convulsivo contexto de tomada do poder:
“O comandante da Flotilha jantava, na Capitania do Porto, com o comandante Cyro Câmara, quando aí compareceu, poucos minutos antes de romper a revolta, um tenente do Exército, acompanhado de praças, que os convidou a seguir até o 27º BC, onde ficaram detidos na secretaria. Toda a guarnição federal do Amazonas aderiu ao levante, que teve como causa inicial a desobediência do 27º BC à ordem de embarque chegada pelo ‘Bahia’. Apenas o mestre do aviso ‘Ajuricaba’, o 1º cozinheiro e um médico da Armada que viajara no ‘Bahia’, não aderiram ao movimento.”
O autor da prisão dos oficiais da Flotilha, não mencionado por Ildefonso, foi o Tenente Euclydes Lins, que, tão logo os recolheu ao quartel do 27º BC, fez disparar um rojão, a que se seguiu outro foguete similar, acionado pelos marinheiros amotinados. Era a senha combinada entre as forças de terra e mar no sentido de que esta última se achava solidária com os revoltosos.
Consumatum est! A “noite dos generais” – ou, melhor dizendo, dos tenentes – chegava a seu termo, sem mortos nem maiores feridos nas escaramuças. A promessa de um novo alvorecer despontando no Amazonas no dia seguinte encheu de alegria o coração de muitos amazonenses oprimidos, bem como insuflou com um novo ânimo o espírito dos sublevados vitoriosos. Estes, entretanto, encontrariam pela frente uma “casa” completamente desordenada e virada pelo avesso, e muito haveria ainda por fazer...
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FONTES DA PESQUISA: Hemeroteca Digital Brasileira/Biblioteca Nacional (jornais diversos); A Revolução de 1924 em Manaus (1985), de autoria de Eloína Monteiro dos Santos; e Ribeiro Júnior, Redentor do Amazonas – Memórias (1997), de autoria de Eneida Ramos Ribeiro.
Artigo publicado em 04.08.2024.
Joaquim de Magalhães Cardoso Barata (1888-1959), primeiro-tenente do
Exército lotado no 27º BC de Manaus e um dos “cabeças” da Revolução de 1924, ao lado de Ribeiro Júnior. Liderou a tomada do quartel da Polícia Militar na noite de 23 de julho, na ação decisiva que culminou na vitória dos revoltosos. FONTE: Rede Mundial
de Computadores.
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Turiano Meira, governador do Amazonas, em exercício, deposto pelas tropas tenentistas lideradas por Ribeiro Júnior e Magalhães Barata. FONTE: Rede Mundial de
Computadores.
RIBEIRO JÚNIOR E A REVOLUÇÃO TENENTISTA DE 1924 EM MANAUS – O CENTENÁRIO DE UMA GLORIOSA CAUSA PERDIDA
Por Ronald Péres

Alfredo Augusto Ribeiro Júnior (1889-1938), tenente do Exército, líder da Revolução de 1924 em Manaus e governador interino. Cognominado popularmente como o “Redentor do Amazonas”. FONTE: Rede Mundial de Computadores.
PARTE I – OS FATOS ANTECEDENTES

Há exatos 100 anos, em 23 de julho de 1924, um pequeno tsunami político “varria” a quieta e provinciana Manaus de pouco mais de cinquenta mil habitantes: era a “Revolução Tenentista” (ou “Comuna de Manaus”, como também ficou conhecida), um levante militar liderado por um grupo de tenentes do Exército, tendo à frente Alfredo Augusto Ribeiro Júnior e seus companheiros de farda aquartelados no 27º Batalhão de Caçadores da Praça General Osório, que, num movimento heroico e valoroso, depuseram pela força das armas o governo oligárquico, corrupto e nepotista de César do Rego Monteiro (1921-1924). Uma revolução de vida breve, que durou pouco mais de um mês, mas que, pelo alto mérito moral de que se revestiu a causa, bem como a personalidade de seu líder, marcou para sempre as páginas da História do Amazonas.
Antes de nos debruçarmos sobre os fatos locais que culminaram na rebelião amazonense, é preciso compreender o contexto maior da conjuntura política no Brasil. Assim como os antecedentes históricos que prepararam o terreno para que as coisas se desenrolassem de forma célere e febril, tal como se passaram naquele distante verão amazônico, há uma centúria.
A República brasileira, proclamada em 15 de novembro de 1889, nasceu sob a égide do militarismo, e - muito além dos inflamados discursos ideológicos vociferados contra o regime monárquico, desde a década de 1870, pelos próceres do Movimento Republicano - foi fruto direto de uma quartelada, urdida na calada da noite, sob o calor de insatisfações circunstanciais dos altos comandantes das forças armadas de mar e terra. Militares foram, não por um acaso, os dois primeiros presidentes do novo Estado federativo, os marechais alagoanos Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, que governaram a nação com “mão de ferro” (especialmente o segundo). Em vista disso, mesmo quando, premidos pelas demais forças sociais, os homens de farda se viram obrigados a entregar o poder governamental aos civis, a partir de 1896, estes jamais se despiram, em sua mentalidade coletiva, do sentimento de “pais da República”. E sempre se mantiveram à espreita e à ilharga do poder, digamos assim, atentos e vigilantes quanto às posturas adotadas pelos diversos mandatários paisanos que se sucederam no Palácio do Catete (a sede do governo federal, no Rio de Janeiro) pelo quarto de século seguinte, dentro da “Política do Café com Leite”, que alçava à Presidência da República, a cada quatro anos, sob a forma de eleição indireta, um político de São Paulo em alternância com um de Minas Gerais, os dois Estados mais ricos da Federação, num questionável e exclusivista sistema de “rodízio geográfico” bilateral e descaradamente plutocrático.
Tal estado de coisas levou, ao longo do tempo, a uma insatisfação crescente nas casernas, que passaram novamente a reivindicar de forma ostensiva, ao longo de toda a década de 1920, uma maior participação dentro da estrutura de governo do país, como que repristinando o espírito do republicanismo militarista vigente trinta anos antes. Esse movimento, urdido nos quartéis de todo o país - e muito inflamado por episódios esporádicos, como o fechamento do Clube Militar e a nomeação de civis para as pastas ministeriais das Forças Armadas - seria alcunhado pelos historiadores de “Tenentismo”, por ter sido protagonizado em todos os casos por militares dessa patente, e teve como estopim o motim de 5 de julho de 1922, no Forte de Copacabana, no Rio de Janeiro. Um levante “quixotesco”, urdido de forma heroicamente amadora por um grupo pequeno de militares amotinados naquela fortaleza carioca sob a liderança dos tenentes Antônio de Siqueira Campos e Eduardo Gomes com o objetivo de depor Epitácio Pessoa da presidência da República e impedir a posse do novo presidente eleito, Artur Bernardes, ambos representantes das oligarquias paulistas e mineiras. Rapidamente reprimido pelas forças legalistas, num confronto corpo-a-corpo em plena Avenida Atlântica, que deixou como saldo trágico a queda em combate de quase todos os revoltosos, o trágico levante passaria para a história do Brasil como o episódio conhecido como a “Revolta dos Dezoito do Forte”. E, ao contrário de arrefecer os ânimos, só contribuiu para “botar mais lenha na fogueira” do clima beligerante que - emulado pelo sangue dos mártires de Copacabana e pela não-concessão de anistia aos insurretos sobreviventes - continuou a vigorar, ainda com mais força, em boa parte do seio militar, resultando, num curto espaço de apenas dois anos, na eclosão de sucessivos “estados de sítio” em diversos estados da Federação: São Paulo, Mato Grosso, Sergipe, Pará e Rio Grande do Sul.
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No remoto e pacato Amazonas, localizado a milhares e milhares de quilômetros do epicentro dos acontecimentos nacionais, esse clima de latente insurreição fardada também não tardaria a soprar seus agitados ventos. Mas, desta feita, por razões muito específicas, aparentemente distintas – embora, substancialmente, nem tanto assim – daquelas que culminaram na sublevação da capital federal e em outros pontos do país.
Em 1924, o Amazonas e sua capital, Manaus, sentiam fortemente os efeitos da crise da borracha amazônica no mercado internacional, deflagrada uma década antes com a queda abrupta do preço da preciosa commodity (até então o segundo item da pauta de exportações brasileiras, depois do café) na cotação das bolsas europeias e norte-americanas, suplantada que fora pelas maciças e mais baratas safras inglesas egressas ano após ano das racionalizadas plantations do Império Britânico no Sudeste Asiático. A capital amazonense já não vivia mais os seus “anos dourados” do início do século vinte, quando prósperos comerciantes abriam uma loja de finos produtos importados a cada esquina; e na qual poderosas firmas exportadoras estrangeiras com assento na Associação Comercial disputavam um lugar ao sol no mercado local para ver qual delas detinha a maior capacidade de absorver a contínua produção dos seringais interioranos, e, consequentemente, negociá-la a peso de ouro no exterior. Inversamente proporcional a esse quadro de pujança, Manaus era, no início da década de 1920, uma cidade achatada economicamente, estagnada em termos populacionais e sem quaisquer perspectivas de progresso, nem mesmo a longo prazo. Uma comunidade majoritariamente composta, em parte, por uma massa operária pouco instruída intelectualmente e pouco organizada em termos sindicais; e, na outra banda, por um núcleo burguês de funcionários públicos que sobrevivia basicamente de seus parcos salários estipendiados pelo Erário. Proventos esses que, naquele preciso e delicado momento histórico, por um calamitoso e degradante estado de coisas, pareciam se “esfumaçar” diante de seus olhos, antes mesmo de aportarem em suas vazias algibeiras...
Alçado à cátedra governamental desde 1921, pela via da eleição indireta através da Assembleia Legislativa (como era de praxe da regra constitucional vigente em nível nacional), o ex-senador e desembargador piauiense César do Rego Monteiro, dono de uma personalidade autoritária e corrupta, não perdeu tempo em deflagrar, às escâncaras, uma série de desmandos com o uso da máquina pública, como talvez jamais se vira antes no Amazonas, nem mesmo nos tempos dos sucessivos e controvertidos governos dos irmãos Silvério e Constantino Nery, entre 1900 e 1908, no auge do ciclo do látex, marcados pelo empastelamento de jornais opositores e pela contratação de milionários e impagáveis empréstimos com bancos estrangeiros, que muito contribuíram para comprometer mais ainda a saúde financeira do Estado pelos anos vindouros. Governos que, a despeito de tais práticas e políticas equivocadas, ainda se preocuparam, contudo, em manter uma aura de respeitabilidade e decência perante a sociedade amazonense, ainda que esta não passasse de uma tênue e rota “capa cerzida”.
Rego Monteiro, todavia, ao contrário de seus antecessores, não tinha qualquer peia moral nesse sentido. Assim, ocupou-se prontamente, à guisa de escudo e sustentáculo político de suas indisfarçáveis intenções de poder absoluto e enriquecimento ilícito, em montar uma camarilha em torno de si, capitaneada, não por acaso, por seus parentes próximos, devidamente investidos em cargos estratégicos: seus filhos, Edgard (prefeito de Manaus), Mário (chefe de Polícia) e Claúdio do Rego Monteiro (magistrado, assim como o pai); e seu genro, Turiano Meira, presidente da Assembleia Legislativa. Um misto de oligarquia e plutocracia baseada no nepotismo que vinha, desde a assunção daquele magistrado ao governo estadual, minando as finanças e a paciência do povo amazonense com uma série sem fim de desmandos: encampações ilegais de imóveis e “negociatas” de toda sorte, sendo a mais audaciosa delas a tentativa de empréstimo (frustrada pelo governo federal) de 23 milhões de dólares com a empresa norte-americana J. C. White Engineering Company, tendo como lastro a cessão de 30.000 quilômetros quadrados de terras estaduais; chantagem e agressão física de cidadãos opositores do governo, perpetrados pelo órgão policial (convertido numa verdadeira “milícia política”); meses de salários atrasados, pagos somente à custa de muita humilhação e a imposição de descontos “leoninos” (de mais de dois terços) aos servidores públicos, sob pena de demissão; e outros desatinos mais. Um status quo tão surreal que fazia com que a diferença entre o banditismo oficial vigente na oprimida Manaus de meados dos anos 20 e aquele imperante na Chicago dos anos 30, dominada pelas gangs da época da “Lei Seca”, se desse apenas em níveis proporcionais de latitude, violência e modus operandi.
No que concerne à audácia e impiedade dos “donos do poder” encastelados no Palácio Rio Negro e nos gabinetes oficiais, dois episódios em particular chocaram a sociedade da época, em razão da honorabilidade das vítimas afetadas pelos métodos nada ortodoxos dos Rego Monteiro, ambas da mesma família. O primeiro desses casos dramáticos envolveu a extorsão praticada contra o professor Francisco Telles da Rocha, um cidadão de meia-idade, bastante respeitado e distinguido socialmente. Este era credor do Estado da importância de dois contos de réis (uma soma expressiva para a época), quantia que almejava legitimamente receber em sua integralidade a fim de, precipuamente, não interromper a formação acadêmica de seu filho Sabbas, estudante de Medicina na Bahia, subsidiado pelo pai. Contudo, vendo-se na iminência de não ver nem a cor do vil metal, o honesto e humilde professor “aceita” a indecorosa proposta do governo de redução do seu crédito para menos da metade do valor devido (oitocentos mil réis), “estimulado” ainda mais nesse sentido diante da ameaça explícita de ver seus bens levados à hasta pública para a quitação de impostos atrasados. Mora esta decorrente, não por acaso, do não-pagamento em dia de seus vencimentos, por parte do Estado! Era uma roda perversa e canalha, que girava sem parar, alimentando um círculo vicioso e nefasto no qual os Rego Monteiro se tornaram experts em manipular, gerando um clima generalizado de opressão e medo, que teve como símbolos do explícito achaque institucional as bandeiras de leilão frequentemente postas à frente das casas dos devedores do Erário, como forma de intimidá-los e coagi-los a aderirem, de uma forma ou de outra, ao saque oficioso praticado pelo verdadeiro “sindicato do crime” que havia se formado nos intestinos do governo e pelos asseclas do clã para “serviços sujos”, dos quais dois se tornaram tristemente famosos pela sua truculência: os policiais (capangas ou jagunços, melhor dizendo) que atendiam pelos nomes ou alcunhas de Calambange (um homem de cor negra) e Pina (um imigrante português), responsáveis por surras homéricas e toda sorte de atos degradantes perpetrados contra cidadãos de bem nos subúrbios da cidade, na calada da noite. E, por vezes, até mesmo à luz do dia, como foi o caso do jornalista Agêo Ramos, diretor do jornal oposicionista Gazeta da Tarde, seviciado pela Polícia em plena via pública, diante de todos.
Esse episódio deprimente se desdobraria ainda em dois lances deveras tristes e revoltantes, quando da humilhação dupla sofrida por D. Mimi, filha do professor Francisco Telles, irmã de Sabbas e mãe da futura cantora lírica Eldah Bitton, então uma mocinha de apenas dezoito anos. D. Mimi era uma senhora de “prendas domésticas”, como tantas de sua geração e condição social. Assim, na ingênua e desesperada tentativa de ajudar seu pobre pai a receber os seus salários atrasados, Mimi bordou uma almofada para a filha do governador (a quem tinha como sua amiga) e – usando de um ardil benevolente, digamos assim - ofertou o presente através do marido desta, o médico Turiano Meira (genro de Rego Monteiro), que, ao tentar pagá-la pelo delicado trabalho manual, obteve como resposta de Mimi que a melhor gratificação que ela poderia receber seria a pronta intercessão de Turiano junto ao seu sogro em favor da causa do professor Telles. Este, todavia, num gesto de franca pusilanimidade e falta de empatia, sai-se com uma evasiva qualquer e deixa a pobre mulher falando sozinha.
Inconformada, e mais uma vez imbuída da boa ousadia própria dos indignados e injustiçados, Mimi não se dá por vencida e, pouco tempo depois, toma o rumo do Palácio Rio Negro, levando a jovem filha Eldah consigo, como acompanhante. Lá chegando, ambas obtêm uma audiência com ninguém menos que a primeira-dama do Estado, a senhora Elisa Rezende do Rego Monteiro, egressa do proeminente clã dos Rezende, uma família igualmente de origem piauiense, assim como a de seu marido, e berço de nomes de peso na sociedade amazonense, com atuação, em especial, no ramo do Direito. A despeito de sua origem tradicional, D. Elisa, porém, não era uma personalidade de trato fácil, muito pelo contrário, sendo tida e havida por muitos como uma mulher antipática e arrogante, má fama à qual eram acrescidas as pechas de ser uma pessoa fútil e insensível às agruras pelas quais passavam os seus concidadãos. Nesse sentido, uma “madrinha” com tais características negativas era tudo com que D. Mimi não poderia contar naquele calvário embaraçoso por si percorrido. Um suplício subitamente potencializado, pois, a par das tribulações pelas quais passava seu patriarca, a família Telles da Rocha se viu ainda às voltas com a morte de Agrícola, filho do professor Francisco e irmão de Mimi; e, submetida à condição de quase indigência em que se encontrava, não possuía recursos para financiar um sepultamento digno ao extinto. Engana-se quem supor que a ilustríssima senhora primeira-dama tenha minimamente se condoído do drama familiar narrado por Mimi. Segundo o depoimento das suplicantes e de outras testemunhas indiretas do colóquio travado entre as duas mulheres, D. Elisa, após ouvir detidamente a pungente narrativa da postulante e a sua súplica final por ajuda, encerrou a conversa de forma seca e implacável com a seguinte frase: “Mas quanta gente boa se enterra pela Polícia!”. Como Deus jamais desampara, segundo o ditado popular, o respeitado e humanitário médico Adriano Jorge, uma boa alma cristã, logo arregimentou amigos da família para se cotizarem para o enterro, numa última tentativa de pressionar moralmente os Rego Monteiro perante a sociedade amazonense. A tentativa logrou êxito, mas apenas em parte, pois, uma vez financiado o funeral pelo Estado, as despesas seriam descontadas mensalmente do ordenado de D. Mimi. Um opróbrio total e completo. Para os Rego Monteiro, evidentemente.
A “gota d´água” de tal cadeia de abusos teve seu ápice na noite de 19 de abril de 1924, um Sábado de Aleluia, quando o casal Rego Monteiro, numa atitude de total escárnio diante da conjuntura desesperadora pela qual atravessava a imensa maioria do povo amazonense, abriu os salões do Palácio Rio Negro para um suntuoso baile de gala, tendo como tema o período do Segundo Império na França de Napoleão III (1852-1870); evento este no qual os cavalheiros compareceram vestindo traje a rigor (smoking) e as damas foram formalmente convidadas a envergarem fantasias calcadas na moda de meados do século XIX. A festa, nababesca e oferecida sem qualquer específico pretexto de ordem cívica, teria tido como única razão de ser o desejo da voluntariosa primeira-dama Elisa de descer as escadarias do palácio exibir sua deslumbrante fantasia de “Imperatriz Eugênia” e, por via de consequência, ostentar diante dos olhos de toda a elite local a riqueza voluptuária desfrutada pelo casal, visível na luxuosa mobília e decoração da residência oficial, na mesa farta do banquete, na ornamentação de flores naturais e na feérica iluminação do palácio e de seus jardins, que atraiu para a Avenida Sete de Setembro, naquela noite, tal e qual mariposas diante da luz, uma pequena multidão de espectadores (formando um “sereno”, como se costumava dizer na Manaus do passado), alguns espantados e muitos certamente indignados, mas todos ávidos por conferir de perto o absurdo nível de desfaçatez de seus governantes. Há relatos orais, deixados pelo mais antigos, de que muitos dos assistentes daquele “circo palaciano” armado na pequena península formada pela junção dos igarapés de Manaus e Bittencourt não contiveram seus ânimos de fúria, chegando ao ponto de puxar um coro de apupos (vaias) e impropérios por ocasião da chegada a palácio daqueles convidados tidos como indesejáveis – os “sócios” e “clientes” da camarilha Rego Monteiro.
Guardadas as devidas proporções, pode-se dizer, em retrospecto, que aquela portentosa efeméride – animada por valsas vienenses e outros bailados executados pela impecável orquestra do maestro João Donizetti até as três horas da madrugada - representaria para a oligarquia dos Rego Monteiro uma espécie de “baile da Ilha Fiscal”, um “canto de cisne”, antecipando a sua breve derrocada. Imersos na ostentação de seu poder e emulados pela adulação dos áulicos de sua “Corte” (tanto os cinicamente convictos quanto aqueles compreensivelmente atemorizados), o poderoso “César” e sua “Imperatriz” jamais poderiam supor, no pleno exercício de sua potestade, que, em meio ao rebuliço daquele festim dionisíaco de noite de inverno amazônico, um olhar atento os espreitava, e a tudo observava. Um olhar perspicaz e crítico, lançado por um conviva muito discreto, mal percebido entre os tantos sobrenomes graúdos da sociedade amazonense – políticos, juízes, advogados, médicos, jornalistas, comerciantes de alto coturno, cidadãos estrangeiros de alta expressão – que compunham a seleta lista de convidados do primeiro casal. Seu nome? Alfredo Augusto Ribeiro Júnior, um altivo e garboso militar de 35 anos, orgulhosamente investido em seu posto de primeiro-tenente do Exército, extremamente politizado e perfeitamente cônscio do papel decisivo exercido pelas Forças Armadas nos destinos da nação, desde o reprimido levante do Forte de Copacabana. O homem predestinado pela História a servir de algoz dos algozes do Amazonas...
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P. S.: Continua no próximo domingo!
FONTES DA PESQUISA: Jornal do Commercio (edições diversas), e Ribeiro Júnior, Redentor do Amazonas – Memórias (9ª Edição, 2016), de autoria de Eneida Ramos Ribeiro.
Artigo publicado em 21.07.2024.
César do Rego Monteiro (1863-1933), governador do Estado do Amazonas entre 1º de janeiro de 1921 e 23 de julho de 1924. Seu governo, considerado unanimemente como um dos mais corruptos da história republicana estadual, foi deposto manu militari pelas forças revolucionárias do Exército e da Marinha, no episódio que ficou conhecido historicamente como a Comuna de Manaus. FONTE: Wikipedia - Rede Mundial de Computadores.

Vista panorâmica de Manaus, capturada pelo fotógrafo e cinegrafista português Silvino Santos, durante o primeiro sobrevoo feito sobre a cidade, pelo hidravião Eleanor III, no contexto da célebre expedição científica à Amazônia conduzida pelo geógrafo norte-americano Alexander Hamilton Rice Jr., entre 1924-1925. FONTE: Fan Page ‘Manaus Sorriso’ - Rede Mundial de Computadores.
SÉRIE “HISTÓRIA”

O SEMINÁRIO DE SÃO JOSÉ E A EDUCAÇÃO FORMAL
NA MANAUS DA ÉPOCA DA PROVÍNCIA
Por Ronald Péres
Durante quase todo o segundo quartel do século XIX, ou seja, desde a Independência do Brasil, em 1822, quando o atual território amazonense (antes, Capitania de São José do Rio Negro) permaneceu sob a tutela política da Província do Grão-Pará, sob a condição menor de Comarca do Alto Amazonas – o ensino em nível intermediário de graduação foi extremamente negligenciado pelas autoridades. Manaus, erigida ao foro de vila somente em 1832, não dispunha de qualquer escola oficial, sendo a instrução primária ministrada por abnegados e diletantes professores particulares em suas próprias e modestas casas. Assim, qualquer pessoa que houvesse cursado as primeiras letras e quisesse prosseguir além em seus estudos, teria, forçosamente, que se deslocar, durante dois longos meses, de barco a vela – estamos falando de um tempo anterior à navegação a vapor! - até Belém do Pará, situada 1.500 quilômetros Rio Amazonas abaixo. Ou então tomar o rumo de São Luís, Recife, Salvador ou do Rio de Janeiro, e se desvincular completamente de sua realidade amazônica. Um descalabro total!
Esse perverso status quo, que praticamente condenava os amazonenses a viverem mergulhados na mais profunda ignorância, somente se altera em 14 de maio de 1848, apenas dois anos antes da criação da Província do Amazonas, quando, por determinação de D. José Affonso de Moraes Torres, Bispo do Pará, é fundado o Seminário Episcopal de São José, a primeira escola de ensino secundário da cidade, uma instituição particular, gerida pela Igreja Católica, mediante subvenção anual do Poder Público de 1.400 contos de réis. Lembremo-nos que, até o advento da primeira Constituição da República, de 1891, o Estado não era laico, e, portanto, as obrigações e os interesses deste e da Igreja fundiam-se e confundiam-se, muitas das vezes. Sendo assim, era encarado como dever do Estado e da Igreja unir suas forças – e, ao mesmo tempo, tutelarem-se entre si - na promoção do ensino formal da melhor qualidade aos seus jurisdicionados e fiéis. Tudo dentro dos valores e princípios cultivados pela veneranda e milenar Sé de Roma, e abraçados pelo Império brasileiro.
Com esse munus, o governo local (ainda respondendo aos ditames do Pará) cede à Cúria, a título precário, um amplo terreno de sua propriedade, situado próximo ao Rio Negro, às margens de um pequeno igarapé há muito desaparecido – o Igarapé da Olaria; ou da Ribeira, como também era conhecido. Ali - na esquina da atual Rua Tamandaré com a Praça da Matriz - é edificado o novo Seminário, um prédio austero, de beiral saliente, telhas do tipo “capa-e-canal”, inteiramente caiado de branco, com muitas janelas de guilhotina e um átrio interno. Tudo dentro do melhor figurino da arquitetura portuguesa que vigorou no Brasil ao longo de todo o período colonial. Além do educandário, o vasto imóvel abrigava ainda em uma de suas dependências a residência do Vigário Geral, maior autoridade eclesiástica da Província até a criação do Bispado do Amazonas, em 1892. Não há registro do nome do arquiteto que o construiu, nem tampouco de imagens de sua disposição interna, mas é crível supor que seguisse o padrão das construções monásticas e educacionais erguidas pela Igreja Católica no mundo inteiro, com muitas salas e cômodos destinados ao estudo, à convivência, à oração e ao recolhimento; amplas, arejadas, revestidas com ladrilhos rústicos de cerâmica e com pé-direito alto; e sem grandes luxos, com mobília sóbria e esparsa.
A fotografia abaixo, capturada no início do século XX, é rara, e retrata, ainda que sem maiores detalhes, a volumetria e a aparência externa do velho Seminário São José, que ganhou mais visibilidade após o aterro do pequeno igarapé na década de 1860, que resultou no novo Largo da Imperatriz, aberto diante de si, uma longa alameda adornada por duas fileiras de belíssimas palmeiras imperiais. E que ganharia, dentro de poucos anos, a vizinhança fronteira da nova e bela Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, aberta ao culto em 15 de agosto de 1877, dia da Festa da Assunção de Maria Santíssima.
Ali, entre aquelas grossas paredes construídas em taipa sobre base de pedras, os primeiros educandos amazonenses tiveram acesso ao mesmo farto ‘curriculum’ disciplinar oferecido aos seus pares da Corte e de outras capitais, todo ele calcado na visão humanística e universal preconizada pelos pedagogos da época: Português, Francês, Latim, Aritmética, Álgebra, Geometria, Geografia, História, Filosofia, Retórica e Religião (Catecismo, História Bíblica e Civilidade Cristã); complementadas com duas aulas semanais de educação artística - Música (vocal e instrumental) e Desenho; e também de educação física.
O colégio religioso, que funcionava em regime triplo – externato, internato e semi-internato (estes últimos, os alunos “pensionistas”) - era dirigido por um padre superior, ostentando o honorável título de “Reitor”, que zelava de perto pelo bom nome e pela boa imagem do Seminário, selecionando a mais completa grade curricular, os melhores mestres (clérigos ou laicos), e se ocupando inteiramente, claro, do conforto, da rotina e da disciplina do estabelecimento. Assim se lê num anúncio do jornal “Amazonas”, de 1882, no qual o então Reitor, padre Amâncio de Miranda (que hoje empresta seu nome a uma rua no bairro de Educandos), ao mesmo tempo em que declara abertas as matrículas para o próximo período escolar, estabelece desde logo, rigidamente, tanto o padrão dos uniformes que os futuros discentes deveriam trajar – calça, paletó com gola de veludo, colete, gravata e chapéu de massa; todos na cor preta – quanto os itens do extenso “enxoval” (a expressão era esta) que os alunos internos deveriam trazer de suas casas. Nestes termos: “1 travesseiro, 4 fronhas, 4 lençóis e 2 cobertas, 12 camisas, 8 ceroulas, 12 pares de meias, 6 pares de calças pardas, 6 paletós pardos, 12 lenços, 6 toalhas de rosto, 2 calções de riscado para banho, 2 sacos grandes para roupa, 4 camisões de dormir, 2 pares de sapato (um para casa, outro para saída), 1 espelho, 1 pente de alisar, 1 tesourinha, 1 escova para dentes, 1 para sapatos, 1 para fato (paletó), e 1 bauzinho (...), para guardar pequenos objetos, que deve estar sempre à mão!” (sic)
O ensino no Seminário – que também ministrava o curso primário – era custeado pelos pais ou tutores dos alunos, que também se responsabilizavam em fornecer os livros e materiais escolares. As “pensões” (valores dos cursos) eram pagas mediante cotas trimestrais, advertindo o colégio aos pais, desde logo, que “(...) o aluno que, no décimo dia de cada trimestre, não estiver quite com a casa, será convidado a entrar no gozo de suas férias” (sic). O ano letivo iniciava-se em janeiro e findava em outubro. Os horários variavam de acordo com o regime eleito pelo aluno: os externos entravam às 7:45h e saíam às 10h, retornando para novo turno das 2:45h às 4:30h da tarde; e os semi-internos, permaneciam das 7:45 às 16:30h, sem intervalos, com pausa para almoço no refeitório. Já os internos, todos do sexo masculino, eram alojados em dormitórios coletivos, tendo direito às refeições diárias e à lavagem periódica de suas roupas, devidamente identificadas com as iniciais de cada aluno, e guardadas em armários próprios, fechados a chave. Com esse nível de disciplina, não é difícil imaginar que, embora não explicitado no informativo publicado na Imprensa, os castigos físicos impostos aos alunos de aprendizado lento ou indisciplinados fossem uma tônica pedagógica “embutida no pacote”, com a aplicação frequente de “bolos” de palmatórias e réguas, “cascudos” e puxões de orelhas naqueles de índole dispersa, rebelde ou peralta. Uma praxe que, aliás, subsistiu até os anos 1980 nas escolas públicas e particulares, sempre defendida ou repudiada com muita veemência por pais, mestres e pelos próprios alunos.
Ao longo de sua história, o Seminário de São José foi a base sócio-educacional de várias gerações, filhos da elite amazonense em sua maior parte, mas também crianças egressas de famílias sem recursos – os “filhos da Província”, como eram admitidos na escola, beneficiados com bolsas de estudo mantidas pelo próprio Estado. Sendo assim, foi o Seminário do Largo da Imperatriz responsável pela formação de nomes expressivos da política, do magistério, da magistratura, do funcionalismo público, das profissões liberais, e das artes e letras no Estado do Amazonas, além de clérigos, evidentemente. Dentre seus muitos professores, destacaram-se alguns nomes, como o cônego cearense Israel Freire da Silva (1859-1925), um intelectual robusto, catedrático de 4 disciplinas - Português, Francês, Latim e Retórica – e o maestro baiano Adelelmo do Nascimento (1852-1898), um dos nomes ancestrais da Cultura no Amazonas, titular das aulas de Música e Canto no Seminário e também no Instituto dos Educandos Artífices, a primeira escola técnica do Amazonas.
A partir da criação do Liceu Provincial (futuro Ginásio Amazonense Dom Pedro II), em 1869 - o primeiro colégio de instrução pública do Estado - o velho Seminário começa lentamente, a perder prestígio em detrimento de seu rival, que passa a ser encarado como a nova “menina-dos-olhos” da educação pelo governo provincial, e foco de todos os investimentos nesse setor, tanto em relação ao seu corpo docente quanto às instalações do novo colégio. O que leva à decadência daquele velho educandário religioso, acentuada bastante após a separação entre Estado e Igreja, após a proclamação da República, que implicou necessariamente no fim das subvenções subministradas aos padres pelos cofres do Erário.
Com a extinção do Seminário, em 1909, o velho casarão da Praça da Matriz, já bastante mal conservado, permaneceu vacante e subutilizado durante mais alguns anos. Em 1917, o Estado, legítimo dono do terreno, autoriza por lei a sua alienação ao Banco do Brasil, que, após demolir o vetusto prédio, ali edificaria a sua sede própria, inaugurada somente em 1929. Quanto ao tradicional Seminário, seria recriado décadas mais tarde, graças à ativa ingerência do então Bispo do Amazonas, Dom João da Mata Andrade e Amaral, e reaberto oficialmente em 19 de março de 1943 (dia de São José), numa vasta gleba situada entre as ruas Emílio Moreira e Major Gabriel, nos limites da zona central, antes ocupada pela antiga chácara da família Nery. Mas aí já é outra história...
Crédito das imagens: acervo da fan page Manaus Sorriso. Foto 1: panorâmica do Largo da Imperatriz no final da década de 1880 (colorização eletrônica digital de autoria do pesquisador Eliton Reis Lira). Foto 2: aspecto do Seminário São José em 1902.
Artigo publicado em 07.07.2024.

SÉRIE “CINEMA & MÚSICA”

‘Anonimo Veneziano’
O romantismo da Itália (e de toda uma época) cristalizado através de um delicioso “filme-videoclipe”. E de uma canção inesquecível...
Por Ronald Péres
E eis que o alegre mês de junho decorreu. Mês dedicado a três importantes comemorações da Igreja Católica (os dias consagrados a Santo Antônio, São João e São Pedro), à efusão pagã (e gourmand) das festas juninas... E, por certo, à celebração do sentimento-motriz da Humanidade, o amor, com ápice a 12 de junho, dia votivo aos enamorados de todas as idades e de todas as condições. Sendo assim, vamos falar um pouco de amor, de paixão, de ternura e de leveza? O mundo anda tão carente disso tudo, não é mesmo? Desatemos, pois, as amarras que nos prendem à nossa dura realidade cotidiana do presente, e deixemo-nos conduzir, no tempo e no espaço, para cinco ou seis décadas atrás, de volta a uma Itália onírica e romântica, cinematográfica e musical, na qual tudo parecia ser (e talvez fosse mesmo) de uma beleza atemporal e indestrutível. Pelo menos nas canções que embalaram os sonhos de mais de uma geração. Assim como nas imagens coloridas de filmes ingênuos que se tornaram ícones daquele imaginário coletivo, como A Fonte dos Desejos (1953) e o sempre lembrado e querido Candelabro Italiano (1962). Qual jovem, moça ou rapaz, nascido no Pós-Guerra, dentro da chamada geração ‘baby boomer’, não se imaginou, por exemplo, um dia, na pele das personagens de Suzanne Pleschette e Troy Donahue, tendo um intimista colóquio amoroso numa taverna de Roma ao som de ‘Al Di Lá’, cantada na voz de tenor de Emilio Pericoli? Para, logo em seguida, enlevados de mútuo encantamento, subirem numa lambretta e saírem ‘per le strade del mondo’ rumo ao Lago Maggiore ou à Costa Amalfitana. Quem nunca?
Itália. Música. Cinema. Palavras intimamente (e lindamente) associadas entre si. Ao longo de toda a década de 1960, e da primeira metade dos anos 1970, a música italiana experimentou o auge de sua popularidade no mundo inteiro. Mais ou menos como ocorria no Brasil - embalado pela plêiade de imensos talentos revelada pela Bossa Nova (1958-1964) e seqüenciada pela Era dos Festivais (1965-1973) – a Itália dos 60´s e do início dos 70´s também se revelou um “celeiro” de nomes musicais os mais expressivos, seja na orquestração, na composição, ou na canzone, propriamente dita. Assim, a cada verão europeu, durante o célebre festival de música realizado anualmente (e até os dias atuais) na cidade praiana de San Remo, no litoral da Ligúria, despontavam para a fama internacional artistas do quilate de Domenico Modugno, Sergio Endrigo, Pino Donaggio, Guido Renzi, Fred Bongusto, Peppino Di Capri, Mina Mazzini, Ornella Vanoni; e, claro, a meiga e sempre lembrada Gigliola Cinquetti, a “namoradinha da Itália”, intérprete dos mega-sucessos ‘Non Ho L´Età’ e ‘Dio, Come Ti Amo’ (ambas da trilha sonora do filme desse último nome, de 1966). Foi a época do lançamento de clássicos eternos da canção romântica, como ‘Volare’, ‘Io Che Amo Solo Te’, ‘Anema e Cuore’, ‘Tanto Cara’, ‘Il Mondo’, ‘Roberta’, ‘Champagne’, ‘Canzone Per Te’ (de Sergio Endrigo, defendida e vencida por Roberto Carlos em San Remo, em 1968), etc, etc, etc... Canções que fizeram suspirar multidões de moçoilas sonhadoras pelo planeta afora, atracadas dia e noite às suas vitrolas, às suas capas de discos e aos seus devaneios de uma onírica ‘stanza d´amore’ passada em Roma, Florença, Veneza ou em alguma espetacular praia mediterrânea, sob os braços morenos de um ‘bel ragazzo’, másculo, sedutor e principesco.
Em termos cinematográficos, um dos ápices dessa fantasia coletiva criada em torno do belo país peninsular talvez seja o lançamento, em 1971, do filme ‘Anonimo Veneziano’, dirigido por Enrico Maria Salerno e estrelado pelo ítalo-americano Tony Musante e pela brasileira Florinda Bolkan, nome artístico da cearense Florinda Soares Bulcão, uma ex-aeromoça da Varig, galgada para a fama sob os auspícios do famoso diretor Luchino Visconti – que a lançou como protagonista em 1969 no clássico Os Deuses Malditos (La Caduta Degli Dei) - e da prima deste, a socialite e condessa italiana Marina Cicogna (empresária e companheira de Florinda por duas décadas). ‘Anonimo Veneziano’, como filme em si, não tem nada de excepcional. É uma estória banal, que gira em torno dos encontros, desencontros e reencontros de um casal em crise existencial e amorosa, tendo como pano de fundo o cenário atemporal da bela e aristocrática Veneza. A típica “DR”, como se diz hoje em dia. Mas DR em grande estilo, diga-se de passagem. Com direito a caminhadas solitárias sob a chuva na Piazza di San Marco e nas vielas da velha cidade, passeios a dois nas gôndolas dos canais venezianos, corridas do casal em campos gramados e floridos, capturadas em câmera lenta – um recurso típico do chamado “cinema videoclipe” da época – e contemplações sem fim ao pôr-do-sol nas margens da mágica laguna que cerca a milenar e sereníssima “pérola do Adriático”. E Florinda Bolkan, claro, vestida pelos melhores estilistas de Milão e Paris, “fazendo carão” o filme inteiro, ostentando o seu escovado penteado de “pantera” e arrasando nas botas de cano longo, nas minissaias, nas calças pantalonas, nos sobretudos e nos seus chiquérrimos e imensos óculos de sol, bem na linha Jackie Onassis. Com esse ensemble e esse outfit, o que é mesmo uma simples crise de relação, não é verdade? Ainda mais, se, ao final, tudo acabar na entrega horizontal de uma pós-reconciliação, sob os lençóis de algodão egípcio do Grande Hotel do Lido. ‘(...) Camereriere... Champagne, per brindare un encontro... Per te, che già eri di un altro... (...)’. Sempre se pode evocar o saudoso Peppino di Capri, com sua voz anasalada e seu imbatível ‘Champagne’, clássico romântico de fim de noite (ou seria de extensão da noite?), e deixar a imaginação correr solta...
O filme, hoje um tanto esquecido, teve um sucesso relativamente grande em sua época, já que estava totalmente inserido dentro do contexto no qual foi lançado, tendo sido rodado sob a influência de películas da ‘nouvelle vague’ francesa como o clássico Um Homem... Uma Mulher (‘Un Homme... Une Femme’), de 1966 - embalado por uma inebriante trilha sonora, composta por Francis Lai; e totalmente calcado nos olhares, nos pequenos gestos e no principalmente no silêncio cúmplice dos protagonistas. No caso do filme italiano (assim como no citado filme francês de Claude Lelouch), grande parte de seu sucesso deve-se muito menos às modas e aos dilemas amorosos da estilosa ‘signorina’ Bolkan, e muito mais à igualmente lindíssima música-tema que perpassa toda a película, do primeiro ao último take. ‘Cuore... Cosa Fai’ (Coração... Que Fazes?, em tradução literal) é daquelas músicas que, na língua inglesa, são adjetivadas como haunting – assombrosas, encantadoras, inspiradoras. Composta por Stelvio Cipriani, especialmente para o filme de 1971, e posteriormente interpretada pelos maiores nomes da música internacional - de Fred Bongusto a Ornella Vanoni, de Mantovani a Frank Pourcel - ela ficou mais famosa na forma instrumental, utilizada ao longo do filme. Embora a letra seja também um primor, fazendo alusões ao sol dourado e intenso que banha Veneza e sua lagoa espetacular, e à frenética massa humana que percorre seus becos e canais todos os dias, mimetizando qualquer indivíduo em mais um “anônimo veneziano”, misterioso (e por isso mesmo instigante) e passível de se tornar um(a) grande amante em potencial, ainda que fugaz. É uma música eterna – tão atemporal quanto a cidade que a inspirou – e que, a cada audição, nos enleva e nos faz percorrer em pensamento as nossas Venezas (a cidade real e aquela idealizada, que vive no imaginário de cada um de nós), as nossas “Pasárgadas” (para evocar o genial poema de Manuel Bandeira que fala de um lugar ideal, utópico, onde todos seremos felizes, ao lado do amor que elegermos), as “Xangri-Lás” de nossas ilusões. É claro que essas “cidades de sonho” só existem em nossas mentes, em nossas emoções e desejos mais íntimos. Ao contrário da onírica peça musical composta por Cipriani há mais de meio século, e que permanece sendo uma das músicas românticas mais belas de todos os tempos, na minha modesta opinião.
Cantemos, pois, junto com Fred Bongusto, essa lindeza em forma de balada. É fácil. É só deixar a emoção fluir e embarcar na gôndola destinada a deslizar no canal de um mundo ideal, rumo a um amor ideal. ‘Andiamo’!
‘Cuore, cosa fai (...) Che tutto solo te ne stai (...) Il sole è alto e splende già (...) Sulla città
Al buio tu non guarirai (...) Non stare lì, dai retta a me (...) Di là dai vetri forse c'è (...) Una per te, per te
Almeno guarda giù (...) E tra la gente che vedrai (...) C'è sempre una, una che (...) E' come te
Un viso anonimo che sà (...) L'ingratitudine cos'è (...) E una parola troverà (...) Anche per te
E allora te ne vai (...) Non hai perduto niente ancora (...) A un'altra vita, un altro amore (...) Non dare mai
Il sole alto splende già (...) Sul viso anonimo di chi (...) Potrà rubarti un altro si (..) Un altro si (...) Il mondo é li (...) È li’
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Crédito da imagem: Rede Mundial de Computadores.
Artigo publicado em 23.06.2024.

O TURISTA APRENDIZ – MÁRIO DE ANDRADE: UM MODERNISTA EM MANAUS (Parte I)
Por Ronald Péres
Recentemente, a combinação nefanda de um binômio de fatores negativos – o “rescaldo” da terrível pandemia que assolou o mundo por mais de dois anos; mais o infame estado de indigência ao qual foram submetidos todos os setores culturais por parte das políticas públicas levadas a cabo pela última gestão federal - pôs de lado e deixou passar “em brancas nuvens” a celebração - à altura do que o fato merecia - do centenário de um dos mais cruciais eventos do Brasil no século XX: a Semana de Arte Moderna, aberta, com grande alarde da mídia impressa, em 22 de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo. Façamo-lo, pois, ainda que com certo atraso, rememorando - e dando a conhecer a muitos que dela sequer suspeitam - a breve, porém marcante, estadia na capital amazonense, em julho de 1927, de um dos intelectuais mais icônicos do Movimento Modernista de 1922: o escritor - poeta, romancista e ensaísta Mário de Andrade (1893-1945).
Um “agito” que congregou num mesmo e nobre recinto, ao longo de sete dias, o que havia de mais vanguardista no país em termos de artes plásticas, música erudita e literatura. Uma semana que revelou nomes definidores e definitivos das tendências e da estética da expressão brasileira, pelos cinqüenta anos seguintes; que daria seus frutos inclusive em outras searas culturais, como o teatro, o cinema e música popular; e que foi sintetizado numa expressão cunhada pelos próprios “modernistas” partícipes do evento: a “antropofagia cultural” - uma ideia subjetiva e revolucionária que, em síntese, preconizava a absorção aleatória de todo o arcabouço ancestral das matrizes culturais da formação do Brasil (índios, negros, portugueses, e suas respectivas derivações mestiças) para, uma vez “deglutidas e digeridas”, propiciar o surgimento de um Brasil amalgamado, novo, moderno, contemporâneo, profundamente “enraizado” dentro de si mesmo e perfeitamente desenvolto na sua latinidade e malemolência tropical. A mesma ideologia eclética e pluralista que, décadas mais tarde, nos anos 60, outro grande movimento cultural, o “Tropicalismo”, com Gil e Caetano à frente, rebatizaria como “geléia geral”. Os nomes exponenciais que sobressaíram na Semana de 1922 são, bem ou mal, razoavelmente conhecidos de qualquer brasileiro de mediano nível acadêmico: o músico Heitor Villa Lobos, os pintores Lasar Segall, Di Cavalcanti, Cândido Portinari, Tarsila do Amaral e Anita Malfatti; o escultor Victor Brecheret e os escritores Guilherme de Almeida, Menotti Del Picchia, Ronald de Carvalho, Oswald de Andrade, e... Mário de Andrade, por supuesto!
Do ponto de vista físico, Mário de Andrade era um sujeito comum, quase feio mesmo. Tipicamente brasileiro, de tez morena clara, rosto quadrado, possuía contra si uma acentuada calvície e um evidente prognatismo maxilar, que o deixava com a famosa “cara de mamão-macho”. A despeito dessa falta de atributos, não se dava por vencido, compensando seus defeitos com uma elegância impecável no trajar e nos modos pessoais, que, aos olhos de seus interlocutores, convertiam sua figura num legítimo dandy (ou um “almofadinha”, como se dizia nos anos de 1920). Não bastasse todo esse aplomb em termos de moda e etiqueta, era ainda, de acordo com os que com que ele privaram, um homem encantador, dotado de uma cultura invulgar e de um tirocínio intelectual que logo o tornaram em líder informal do pensamento e do ideal dos “modernistas”, ao lado de seu colega Oswald de Andrade (não eram parentes, apesar do nome). Em 1927, cinco anos depois da realização da Semana de Arte Moderna, Mário já era uma sumidade nacional, recepcionado e adulado em todos os salões nos quais se fizesse presente e em todas as cidades nas quais estivesse de passagem. Celebrado, dentre outras obras literárias, por seu romance Amar, Verbo Intransitivo e pelo poema Pauliceia Desvairada – uma ode ao frenesi e a efervescência mundana e intelectual da metrópole paulistana, tida como o “caldo de cultura” que culminou no Movimento Modernista. E estava ainda por lançar aquela que seria considerada como a sua obra-prima, e síntese do movimento deflagrado por ele e seus pares em 1922: o romance Macunaíma, a fábula satírica sobre um bizarro e patético “herói sem nenhum caráter”, individualista, indolente, lascivo e pleno de idiossincrasias – uma personagem que, na visão cínica de seu autor, seria quase que um alter ego do povo brasileiro, lato sensu falando, independentemente de suas diferentes nuances regionais.
Pois bem, em maio desse mesmo ano de 1927, Mário de Andrade, fazendo jus ao “espírito” de imersão cultural no Brasil profundo que embalava os modernistas, resolve – a contragosto, de início, já que era o típico “urbanóide” paulistano - ingressar numa autodenominada “viagem etnográfica”: a caravana fluvial à Amazônia promovida e bancada por sua grande amiga, Olívia Guedes Penteado, riquíssima aristocrata paulista, proprietárias de cafezais a perder de vista, e uma mulher extremamente culta, que, fazendo-se de mecenas diante dos seus artistas protegidos, e graças às suas excelentes relações sociais, foi uma das primeiras grandes personalidades de seu tempo a entender e “abraçar”, com seu apoio explícito e seu patrocínio financeiro, o grupo de intelectuais projetados pelo sucesso alcançado na Semana de Arte Moderna de 1922. Feitos os preparativos, a ‘entourage’ liderada por madame Penteado embarca no Rio de Janeiro rumo ao norte do país, numa excursão que duraria dois meses e meio, de 7 de maio a meados de agosto de 1927. Embarcados num “vaticano” – antigo e confortável navio regional de grande porte – da companhia inglesa Amazon River, o grupo iniciou sua jornada amazônica em Belém do Pará, a 19 de maio, subindo toda a calha do Rio Amazonas até Iquitos, no Peru; e depois, no retorno, enveredando pelo Rio Madeira, até Porto Velho, onde os forasteiros percorreram um trecho da Ferrovia Madeira-Mamoré. Entre uma e outra escala amazônica, os ilustres paulistas detiveram-se durante quatro proveitosos dias em Manaus (e mais dois dias adicionais intercalados na volta do Peru e, depois, no retorno da região do Madeira), para conhecer e desfrutar das singularidades da antiga “capital mundial da borracha”, antes do regresso ao Pará e ao Sudeste do país.
O TURISTA APRENDIZ – MÁRIO DE ANDRADE: UM MODERNISTA EM MANAUS (Parte II)
As impressões de Mário de Andrade de sua estadia na Amazônia foram registradas, de modo quase telegráfico, em seu diário de bordo, com a intenção de servirem de material para um livro futuro que, infelizmente, jamais saiu do papel. O lapso somente seria corrigido cinqüenta anos depois, em 1976, quando as notas de viagem do escritor paulista foram editadas pela sua conterrânea Telê Porto Ancora Lopez, sob o título de O Turista Aprendiz – um epíteto, aliás, conferido pelo próprio Mário, na epígrafe de suas anotações manuscritas. São relatos, evidentemente, saborosos e de uma riqueza sociológica única, registrados por uma mente arguta, curiosa, mas, de modo geral, bastante humilde, que se mostrou fascinada diante do vasto universo natural e cultural que se descortinava diante de seu olhar tão urbano. Em Manaus, como era de se esperar, D. Olívia e o escritor foram recebidos como verdadeiras celebridades por toda a intelectualidade manauara, andando de “seca a meca” de um lado para o outro, sem pausa para descanso: do Palácio Rio Negro ao Mercado Municipal, do Teatro Amazonas ao Tarumã, do Careiro ao Lago do Catalão. Leiamos, pois, alguns trechos dessa sintética narrativa, como forma de celebrar a reverência e o deslumbramento genuinamente turísticos do afamado intelectual diante da pitoresca e interessante Manáos de meados dos anos 20, a mesma cidade que seu colega Euclydes da Cunha – um misantropo, antipático e snob a não mais poder – tanto menosprezara e ridicularizara, quando aqui esteve em 1905, vinte anos antes de Mário: (Obs: os parênteses são de minha lavra, para melhor situar o leitor da atualidade)
- “5 de junho - Depois de mais uma tempestade noturna, chegamos dia claro em Manáos” (vindos de Itacoatiara). “(...) E toca pro Palácio Rio Negro, onde imediatamente se dá recepção oficial, pelo presidente em exercício, um número de simpatia” (referia-se a Antônio Monteiro de Souza, substituindo interinamente Ephigenio Salles no governo do Estado). “Depois, toca pra ‘Chácara Hermosina’ onde tivemos um almoço colossal, mas colossal!” (chácara do corretor João Hermes de Araújo, localizada no KM 17 da antiga Estrada do Tarumã, onde o grupo permaneceria até o entardecer). “Depois da volta, aproveito o crepúsculo para visitar a ‘zona estragada’ com o coronel comandante da polícia. Depois, vamos ao bairro da Cachoeirinha, visitar o arraial da Igreja do Pobre Diabo, onde tinha festa, como as nossas mesmo: pau-de-sebo, leilão, ‘dou-lhe uma, dou-lhe duas’... Sono calmo e digno. Nessa mesma noite provei sorvete de graviola. Esquisito... A graviola tem gosto de graviola mesmo, isso é incontestável, mas não é um sabor perfeitamente independente. (...)”. P. S: a título de curiosidade, cabe especular de quem teria partido a inusitada ideia de ciceronear uma personalidade dessa envergadura social e intelectual pelas ruas da “zona estragada” (leia-se, o baixo meretrício) da cidade. ‘Très bizarre’, como diriam os franceses...
“6 de junho – De manhã, bonde e passeio oficial até a Fábrica de Cerveja. Tarde também oficial. Hospital, orfanato e exposição Ângelo Guido. Não compramos! (...) Noite livre, minha, com Raymundo Moraes, Da Costa e Silva e outros; infensos a qualquer espécie de ‘futurismo’, porém que se sentiram no dever confrade de me visitar. Aliás, simpaticíssimos, conversa ótima, pouca literatura, muito Amazonas e felicidade, com que me trouxeram a bordo às três horas da madrugada. Me deram o ‘opúsculo de caçoada’, sem maldade, que publicaram por causa de minha vinda futurista. Mas não chega a ser engraçado”.
“7 de junho - Passeio em duas lanchas oficiais pelo Careiro, tempo feio. Largamos o Negro e tomamos pelo Paraná do Catalão. Fomos ao Lago de ‘Amanium’ - não escutei bem esse nome, preciso perguntar. Mas que coisa sublime o lago, inteirinho cercado de mato colossal, calmo, uma calma encantada, em que os ruídos, gritos de animais, estalam sem força pra viver. Solidão pura e livre, nada triste. Lá estavam as vitórias-régias, com os aguapés e socós nas folhas. Voltamos ao crepúsculo. Corrida das duas lanchas. De noite, sem o que fazer, largados pelos da terra, que desejavam que descansássemos, fomos ao cinema (Odeon). (...)”.
“8 de junho – De manhã, visita ao Mercado de Manáos, bem menos interessante e menos rico que o Belém. Provamos o ‘coco’ tucumã, que achei ruim a valer. No almoço provamos o matrinxã, que achei dos melhores peixes do Amazonas. Visita à Fábrica de Beneficiamento de Borracha e à Associação Comercial... (...) Me esqueci: a pupunha com melado é uma gostosura. Partimos de Manáos às 17 horas, todo o corpo administrativo do Estado no cais com banda de música. Vida de bordo. Isso da gente ser o único homem duma viagem com mulheres pode ser muito masculino, mas...”
No dia 2 de julho, quando do retorno da excursão ao Alto Amazonas, registrou ainda Mário de Andrade as seguintes observações:
“Madrugamos em Manáos. Perfeito. Almoço em terra. Fujo visitas a colégios. Conversa com Raymundo Moraes no ‘Ponto Chic’. O Clóvis Barbosa, redator da ‘Redempção’, simpático. (...) Achei Manáos mais quente que Iquitos... Aliás, essa história de calor, a gente mais ou menos se acostuma... Não se acostuma por causa dos naturais desta terra, que não se esquecem de nos dizer todo dia e todo o dia que ‘no dia de hoje está fazendo um calor excepcional”. E, já no fim do dia, ao ser brindado com o majestoso pôr-do-sol no Rio Negro, Mário não se fez de rogado, deitando toda a sua verve poética em louvor do espetáculo natural que tinha diante dos olhos: “(...) E principiou um dos crepúsculos mais imensos do mundo. É impossível descrever. Fez crepúsculo em toda a abóbada celeste, norte, sul, leste, oeste. Não se sabia pra que lado o sol deitava, um sol todinho em rosa e ouro, depois lilás e azul, depois negro e encarnado, se definindo com furor. Manáos a estibordo. As águas negras por baixo. Dava vontade de gritar, de morrer de amor, de esquecer tudo. Quando a intensidade do prazer foi tanta, que não me permitiu mais gozar, fiquei com os olhos cheios de lágrimas.“
E, por derradeiro, as últimas emoções do ‘pit stop’ da temporada manauara, nos dias 20 e 21 de julho de 1927, quando do retorno de Porto Velho: inauguração da “Parada Olívia Penteado” – em homenagem à sua patronesse – na recém-aberta Estrada do Rio Branco (atual BR-174); seguido de um lauto jantar no elegante restaurant do Grande Hotel, à Avenida Sete de Setembro, esquina com a Rua Marechal Deodoro, regado a bons e vinhos e postas de... filés de tartaruga! Petisco exótico sobre o qual teceu o seguinte comentário: “Muito bom! Estes filés de tartaruga vão me deixar com saudades”. Fechando a noite, uma “esticada” à animada e concorrida Leitaria Amazonas, à Avenida Eduardo Ribeiro, muito bem acompanhado da “nata” da intelectualidade local: Raymundo Morais, Clóvis Barbosa, Coriolano Durand, José Chevalier... Podemos bem imaginar a sofreguidão de Mário ao tentar sorver um pouco da vasta cultura regional de Moraes, um homem vivido e experimentado na lida da Marinha Mercante nos altos rios, autor do clássico Na Planície Amazônica (dentre outras tantas obras) e considerado um dos primeiros “amazonólogos” em termos literários.
No dia seguinte, às vinte horas, Mário de Andrade partiria de Manaus definitivamente, de volta à sua “Pauliceia Desvairada”. Em seu diário de bordo, o grande literato sedimentou suas derradeiras impressões do último dia passado entre nós: “Dia 21 de julho. Levanto cedinho, comprar peles de onça. Às dez horas, visita à Prefeitura, e, em seguida, ao Campo de Demonstração (Seringal Miry), ver o corte ‘racional’ da borracha, com a fabulosa ‘faca Amazonas’. Bonito, as folhinhas novas das seringueiras. São prateadas!
Almoço no Palácio Rio Negro. Francamente, esta hospitalidade baré está delicadíssima, generosíssima, agradabilíssima! Depois, delicioso passeio e respectivo lanche no bosque da Cachoeira do Tarumã. O Chevalier foi. E o mineirinho inteligente... Como é mesmo o nome dele?” .....................................................................................................................
Todavia, a mais emblemática declaração de Mário de Andrade sobre a capital amazonense, e que passaria para a crônica histórica da cidade, foi dada por ele semanas antes, quando aqui aportara pela primeira vez. Entrevistado por um jornalista local, Mário, elegante e sutil, definiu Manaus, metaforicamente, como uma “deliciosa mulher de duas idades”. O que deixou seu interlocutor intrigado, que rapidamente o inquiriu: “De duas idades?” Ao que Mário respondeu, sagazmente, deixando entrever a sua total percepção da natureza mutante e ao mesmo tempo nostálgica, que, já naquela época, permeava a “alma” da cidade, outrora tão opulenta e tão vaidosa de si mesma, com um olho no passado e outro no futuro:
- Pois é, Manáos já foi uma virgem linda. Agora é uma mulher fecunda, que ainda traz na sua atualidade a presença do passado. Nos tempos áureos da borracha, viveu se enfeitando: vosso teatro, vosso monumento à abertura dos portos amazônicos, vosso Palácio Rio Negro, ainda são as jóias desse tempo leviano. Depois... jucurutu agourenta regongou nos vossos telhados. A borracha decaiu, mas, pelo que vejo e me contaram, administrações mais que eficientes surgiram e Manáos já vai passando de virgem de luxo a mulher fecunda”.
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Terá Mário de Andrade por acaso notado algum perdido laivo de desvario metropolitano na já então provinciana “Bariceia” do fim dos anos 20? E com quantos “Macunaímas” terá se deparado em suas lúdicas andanças por estas veredas tropicais, bem como pelos demais sertões amazônicos que visitou ao lado de ‘madame’ Penteado - certamente inspiradoras de sua singular criação literária? Enfim, se o poeta modernista gostou ou não gostou da nossa terra, no “frigir dos ovos”, pouco importa afinal. Mas que ele certamente aqui desfrutou de um verdadeiro banquete “antropofágico” (no sentido cultural), e de mais de um banquete “pantagruélico” (no sentido gastronômico), isso é certo...
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Crédito das imagens: Acervo do Instituto de Estudos Brasileiros, constantes da obra O Turista Aprendiz (1976), disponíveis on line através da Rede Mundial de Computadores (Internet).
Artigo publicado em 26.05.2024.


MIRANTE DE SÃO VICENTE – UMA LUZ NO FIM DO TÚNEL?
Por Ronald Péres
Desde o início do mês, os veículos de mídia da Prefeitura Municipal de Manaus vêm divulgando, com bastante destaque nas redes sociais, a inauguração, no dia 4 de abril, do novo MIRANTE DE SÃO VICENTE – oficialmente batizado de “Mirante Lúcia Almeida”, em homenagem à falecida consorte do atual alcaide. Aberto no início da Avenida Sete de Setembro, o mirante é o cerne de um belo projeto turístico que tem tudo para ser um ‘turning point’ no marasmo de décadas em que se encontra “adormecida” uma zona muito especial de nosso centro histórico. Refiro-me ao antigo e seminal bairro de São Vicente, o “chão-berço”, o “marco zero” dos manauaras, local de fundação da cidade e, por mais de dois séculos, de nossa identidade societária.
Para os cidadãos menos afeitos à história e à geografia de Manaus, já forneço as devidas coordenadas, a fim de que todos se situem sem necessitar do auxílio do ‘Google Earth’ ou de qualquer outro aplicativo do gênero. Trata-se do perímetro urbano, de formato irregularmente triangular, que, tendo por base o eixo formado pela Rua da Instalação e o lado ocidental da velha Praça da Matriz, segue na direção oeste até a antiga Ilha de São Vicente, ocupada há anos pela Marinha, como sede do 9º Comando Naval. Centralizado em torno do aprazível bosque da Praça Dom Pedro II - nosso primeiro jardim público, de 1894, com seu gracioso coreto e seu belíssimo chafariz importados da Inglaterra – ali se encontram ruas e becos antiqüíssimos, que são (ou deveriam ser, pelo menos) velhos conhecidos das famílias mais tradicionais desta terra: a Rua Bernardo Ramos (a mais charmosa e pitoresca de todas elas, repleta de lindos casarões construídos durante o Ciclo da Borracha), a Frei José dos Inocentes, a Governador Vitório, a Itamaracá, a Henrique Antony, a Taqueirinha, o Beco José Casimiro, o Beco do Céu (ou “Bairro” do Céu, para não fugir à tradição popular)... Vias e vielas pitorescas, plenas de “cor local”, ladeadas por edifícios igualmente ancestrais e emblemáticos de nossa urbe: o Paço da Liberdade (outrora sede da Prefeitura), o Palácio Rio Branco (antiga Assembleia Legislativa Estadual), a velha Câmara Municipal, as ruínas do icônico Hotel Cassina (ora reaproveitadas num projeto modernista e de gosto duvidoso); e os seculares endereços do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA), de 1917; e da Loja Maçônica “Esperança e Porvir”, de 1894. Sem falar nas impressionantes instalações portuárias da ‘Manáos Harbour’ – o velho cais flutuante do ‘Roadway’, conhecido de todos os amazonenses, talvez a maior e mais sólida herança que nos foi legada pelos ingleses, dentre outras relíquias mais.
Em suma, trata-se de uma região, em tudo e por tudo, de alta relevância histórica e inegável potencial turístico, sem dúvida nenhuma. Um perímetro que, não fosse a crônica falta de visão de muitos de nossos governantes pretéritos (estaduais e municipais), há muito já deveria ter sido convertido em nosso ‘Casco Antiguo’, em nosso ‘Old District’, como se diz, nos idiomas espanhol e inglês, dos perímetros urbanos especialmente caracterizados administrativamente como locais de especial interesse para o turismo. Vocação essa que, no caso do antigo bairro de São Vicente, tem tudo para se firmar de vez, a partir da entrada em cena do novo complexo à beira-rio. Uma área zoneada e afetada urbanisticamente, totalmente estruturada pelo poder público em termos de acessibilidade e segurança; e, com o apoio indispensável e sustentável da iniciativa privada, devidamente restaurada em sua integralidade, casa por casa, rua por rua. Com foco no turismo urbano de qualidade, no lazer proporcionado por um calendário periódico de feiras e espetáculos de rua, e nos serviços de excelentes bares, restaurantes, casas noturnas e outros estabelecimentos afins. Nada diferente do que qualquer cidade do Brasil ou do mundo que leve a indústria do turismo mais a sério que nós, e que já não tenha fomentado iniciativas semelhantes, em maior ou menor grau. Que o diga a nossa querida “irmã” Belém do Pará (com quem insistimos em alimentar uma pueril rivalidade histórica) e sua lindíssima “Estação das Docas”, ponto obrigatório de dez entre dez turistas que aproveitam as delícias e bem vendidas tipicidades da capital paraense. Já o nosso ‘Roadway’... Sem comentários! Relegado há anos à própria sorte, subutilizado pelos seus concessionários, envolvido em querelas jurídicas sem fim e completamente esquecido pela população. Um “combo” negativo e vicioso, em todos os sentidos, que redunda, ao fim e ao cabo, num total desperdício de história, de cultura, de entretenimento, e, claro, de preciosas divisas. Simples assim.
A reabilitação – ou reordenação, ou requalificação, como queiram – do Centro Histórico de Manaus é um sonho antigo, acalentado por muitos manauaras que querem o melhor para sua cidade. Um devaneio cultivado por muitos intelectuais do passado e do presente, como meu saudoso pai, Jefferson Péres, que, desde seus tempos de vereador - tal e qual um pregador bíblico, clamando no deserto para ouvidos moucos - sempre advogou esse ideal, em seus constantes artigos de jornal ou em suas diversas falas públicas acerca do tema Manaus/Urbanismo/Patrimônio Histórico. Uma reivindicação pleiteada por tantos cidadãos viajados, ilustrados e de tirocínio, que não se conformam com o abandono e o desprezo a que tem sido há tempos relegado o nosso Centro, tanto pelo Governo quanto pelos particulares. Uma quimera imaginada por mim, manauara “de raiz” que sou, quando, desde criança, pude perceber as nuances daquele microcosmo tão singular e fascinante, muito curioso que sempre fui, com os olhos bem abertos para as coisas antigas, belas e de real valor. Isto a despeito do permanente receio e pudor sempre incutidos pelos mais velhos, naturalmente preconceituosos em relação àquela área marginalizada pela sociedade, devido ao estigma que sempre a cercou, ao ponto de receber o pejorativo epíteto de “A Zona”, antro de prostitutas, aliciadores, ladrões, bêbados, toxicômanos, tarados e vadios de toda espécie.
O projeto esboçado pelas equipes do IMPLURB e da Prefeitura Municipal é ambicioso e bem delineado, e, a priori, vem ao encontro dos anseios de todos aqueles que almejam a efetiva requalificação urbanística do velho bairro de São Vicente. Como se pôde observar por ocasião da inauguração da primeira parte do novo e belo mirante, aproveitou-se de forma inteligente a estrutura de concreto do feioso prédio da antiga empresa estatal CEAM (Centrais Elétricas do Amazonas), no início da Avenida Sete de Setembro, com localização mais que privilegiada, às margens do Rio Negro que, submetido a um total ‘retrofit’ - o jargão arquitetônico usado para se referir à reforma e adequação de velhos edifícios, com vistas a usos contemporâneos - passará a servir a partir de agora como a base de um grande complexo turístico, totalmente aberto à espetacular paisagem natural ao seu redor, dotado de terraços, varandas, bares, restaurantes, quiosques de guloseimas, palco para pequenos eventos musicais; e, como “cereja do bolo”, um novo píer para atracação de barcos de turismo, a ser inaugurado em breve, segundo a promessa feita pelo senhor prefeito.
É, enfim, um grande passo, uma boa semente a ser plantada, que, de coração, como alguém que ama de fato a sua cidade, rogo a Deus para que medre, e, vicejando, floresça e dê seus frutos, como, quem sabe, a restauração da linda torre da antiga Cervejaria Amazonense, no vizinho bairro de Aparecida, outrora um símbolo industrial de Manaus, de propriedade da tradicional família Miranda Corrêa, e hoje injustamente esquecida e apartada da cidade, relegada a uma pálida reminiscência do esplendor que já teve um dia. Outra grande possibilidade que também pode advir de tal projeto é a recuperação antigo arranha-céu do IAPETEC, hoje INSS, o primeiro prédio de apartamentos de Manaus, inaugurado em 1953. Por que não reconvertê-lo à sua primitiva feição, em estilo modernista dos anos 40/50, e torná-lo novamente um imóvel residencial (ou quiçá um apart-hotel), atraindo uma nova leva de moradores ao bairro de São Vicente. “Sonhar não paga imposto”, como se costuma dizer!
Frutos semelhantes aos que brotaram no projeto do novo Largo de São Sebastião, implantado há quase vinte anos pela Secretaria Estadual de Cultura, sob muitas críticas e a má-vontade de praxe da “turma do contra” e dos “arautos do pessimismo”, mas que hoje está aí, para quem quiser conferir: o entorno do Teatro Amazonas completamente saneado e auto-sustentável, com cinco charmosos hotéis-boutique à sua volta, dois deles de padrão internacional (Villa Amazônia e Juma Ópera), restaurantes, bares, cafés, lojas de artesanato, centros culturais (Banca do Largo, Galeria do Largo, Casa das Artes), e, mais recentemente, a prometida volta da prestigiada Livraria Valer ao seu “ninho” central, a abrir suas portas em breve à Rua José Clemente. Um círculo virtuoso, um bastião de resistência, que teima em se manter sozinho em meio à desolação que, muito antes da pandemia, fez morada no restante do Centro Histórico, repleto de placas de “aluga-se” ou “vende-se”, lojas fechadas nos calçadões da antiga área comercial da Zona Franca, lindos casarões transformados em cortiços ou literalmente caindo aos pedaços e, para nos deprimir ainda mais, todo o entorno do antigo bairro dos Remédios convertido numa “terra de ninguém”, sem lei, sem ordem, sem segurança, sem moradores. Uma “zona cinzenta”, tomada por meliantes, viciados em ‘crack’ e outros entorpecentes, ou simplesmente pessoas desvalidas, sem as mínimas condições de sobrevivência, vivendo ao léu, vagando pelas ruas, deitadas sob as marquises, jogadas pelas gretas e sarjetas da vida, amargando um estado de sub-cidadania que degrada a todos nós enquanto sociedade. Almas perdidas, engolidas pela voracidade da progressista metrópole da Amazônia. Progresso que precisa ser mais democrático, como em todo o Brasil, aliás, para que possa fazer jus ao verdadeiro sentido da palavra. A roda do progresso precisa girar, sim, mas a nosso favor. A favor da Manaus que almejamos e que merecemos.
‘Tutti Auguri’ ao novo e belo Mirante de São Vicente! Que venha com muito sucesso, trazendo consigo outras bonanças e benesses...
Crédito da imagem: IMPLURB/Prefeitura Municipal de Manaus.
Artigo publicado em 28.04.2024.